Eixão: a história e o fim de um modelo

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A anunciada implantação do Veículo Leve sobre Trilhos no Eixo Anhanguera põe fim a um modelo que já dura 37 anos.

O vai e vem dos ônibus do Eixo Anhanguera, em Goiânia, é metafórico. Trata-se, também, de um vai e vem de mais de 250 mil pessoas por dia e, consequentemente, um vai e vem constante de vidas e experiências das mais diversas. O Eixão, como é chamado popularmente, faz parte da história de Goiânia e região, e, com quase 37 anos, pode ter de se despedir do atual modelo para dar espaço ao Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT). A troca, debatida e anunciada há bastante tempo, pode, enfim, ter um início com a publicação do edital de licitação no Diário Oficial do Estado, o que deve acontecer até o final deste mês.

Ao longo dos quase 14 quilômetros do Eixo, entre os Terminais Padre Pelágio e Novo Mundo, ficam perceptíveis o crescimento da cidade, a importância do corredor de transporte para a região metropolitana e os vários estilos e classes sociais que por ele passam, diariamente. A reportagem de O HOJE foi experimentar, na sexta-feira, a sensação de percorrer o trajeto, de ponta a ponta, e conversou com pessoas, ouviu histórias, queixas e sentiu, na pele, a realidade daqueles que dependem do serviço para trabalhar, passear, visitar amigos ou encontrar os filhos que moram em alguma cidade próxima à capital.

A Rede Metropolitana de Transporte Coletivo é composta por 18 municípios. Desses, 15 possuem linhas que integram diretamente nos terminais do Eixo Anhanguera. A Metrobus, empresa responsável pela gestão do Eixo, calcula que só os moradores das cidades vizinhas são responsáveis por cerca de 300 mil viagens por mês. É dessa demanda e desses números expressivos que o presidente da empresa, Adriano Rodrigues de Oliveira, retira o argumento de que, se o Eixo não funcionar bem, naturalmente, irradia ineficiência para o resto do sistema de transporte coletivo, e assim vice-versa. “Sem ele, pode ter certeza: seria caótico”, afirma.

Modernizar

Um dos principais problemas apontados pelas pessoas com quem a reportagem conversou, ainda, é a insegurança. Todos relataram pelo menos uma experiência de assalto dentro do Eixão. Apesar disso, de outros problemas e até da certa praticidade, em razão do vai e vem constante da frota, comporta por 97 ônibus, sendo 61 articulados e 35 biarticulados, o desafio maior ainda é modernizar. O VLT viria para isso. Segundo Adriano, para, essencialmente, privilegiar o tempo de viagem – com incremento de velocidade de até 50% –, a qualidade do transporte e o embarque e desembarque.

Orçado em R$ 1,3 bilhão, o Veículo Leve virá, ainda, com as promessas de ganho ambiental e urbanístico. O combustível fóssil dará lugar ao combustível feito de energia renovável. Um grupo executivo foi formado para acompanhar a publicação do edital e o cumprimento das exigências dentro do prazo. A ideia é que, em dois anos, o VLT esteja implantado e funcionando. Questionado se vai ser assim mesmo, Adriano recua, cautelosamente: “Essa é a ideia, mas é óbvio que, em obras de grande porte, existem obstáculos, sejam técnicos, políticos ou financeiros.”

Até lá, o goianiense e o morador da região metropolitana, ávidos pela modernização e conscientes dessa provável mudança, terão de guardar na mente a imagem curiosa do que vem a ser esse tal de VLT. Alguns chegam a chamá-lo, inclusive, de metrô, trem e tem até aqueles que falam: “Vai ser o trem-bala, né?” Denominações à parte, o certo é que a Avenida Anhanguera e os ônibus que por ela passam vão continuar sendo a “artéria” principal de Goiânia, onde o goianiense convive com a diversidade dos visitantes e, também, “onde se vê de tudo”, conforme certifica o motorista Joaquim Barbosa Moreira, de 58 anos, e que há mais de sete carrega consigo a responsabilidade de conduzir os ônibus do Eixão, os famosos “minhocões”.

“Com o Eixo, posso ir ver meus filhos e amigos”

Péricles Barbosa estava na plataforma do Terminal do Padre Pelágio, de onde a reportagem pegou o primeiro ônibus do Eixo. Dali até a Avenida Goiás, seriam pouco mais de 20 minutos de conversa com ele e a mulher, Maria de Amorim. O que chamou a atenção, a princípio e a distância, foi a fragilidade, o carinho e a perspicácia do casal, que já não lembra direito da idade, nem quantos anos vai fazer. Perguntado, Péricles disse, primeiro: “Dezesseis!” E, depois, emendou com o sorriso aberto: “Não, mentira, lembrei: vou fazer oitenta.” E assim, o simpático senhor, natural do Piauí, começou a se sentir à vontade para relatar sua história.

Ele e Maria estudaram pouco. Ler e escrever são um desafio. Mesmo assim, o casal de idosos – ela também disse que irá fazer 80 anos –, sente-se à vontade para sair por aí, pegar os ônibus corretos e sempre acertar o destino. O Eixo faz parte da vida deles. Apesar de morarem em Aparecida de Goiânia, o hobby de Péricles e a mulher, ambos aposentados, é visitar os amigos e os filhos. Na sexta, eles voltavam de Trindade, onde foram encontrar um amigo. Aos fins de semana, vão sempre para Senador Canedo, cidade de um dos dois filhos. “Isso aqui é o que me leva até eles”, afirma Péricles.

Quem vê tamanha disposição e, ao mesmo tempo, discrição, não imagina a história por trás de tudo. O piauiense veio para Goiás em 1957. Para chegar até aqui, a viagem foi digna de aventura, de livros de ficção. Na época, Péricles e dois amigos juntaram uma tropa de mulas e deixaram o município de Cristino Castro (PI), com destino a Porto Nacional (TO). Ao todo, foram 30 dias em cima de uma mula, segundo ele. E, assim que chegaram em Tocantins, ele vendeu os animais, pegou o dinheiro e pagou a viagem em um caminhão até Brasília e, depois, Goiânia. Engraçado e de fácil trato. O viajante, conhecedor de dez Estados brasileiros, no entanto, guarda uma mágoa: depois que veio para Goiás, conseguiu voltar para ver a família apenas uma vez. “Há 49 anos e seis meses não vejo nenhum deles”, conta.

Ao seu lado, Maria sorria a cada graça, conforme ele relatava os causos. Na verdade, não só ela, mas todos no Eixão. O sorriso da senhorinha ressalta as rugas, com jovialidade irônica de quem, apesar dos problemas na visão, no coração e na circulação, mantém a crença e a certeza de dias melhores. Maria acorda todos os dias às 4 horas para assistir a missa na TV. E é ela quem faz o papel de despertador do marido. “Sou trabalhadora”, define-se, com riso solto. Riso este que esconde a dificuldade da convivência com os problemas de saúde. Todos, sem tratamento, porque a aposentadoria é insuficiente. “Está difícil, mas Deus é bão (sic). Se tu confia nele, vai tudo para frente. Não pode é desconfiar”, aconselha.

‘Corujito’, um dos muitos tipos que passam pelo Eixão

Foi ele que veio até a reportagem: “É sobre os ônibus? Quero falar”, disse. Arnaldo dos Santos Sousa, de 45 anos e quatro meses, como ele mesmo especifica, é um tipo. E um tipo daqueles que chamam atenção, brincam, trabalham, estudam, faz versos e defende os direitos da população. Todos os dias, Corujito, como é conhecido por causa de um problema nos olhos – “De Bonfinópolis a Pires do Rio, se você falar Corujito, todos vão saber quem é”, conta –, sai de casa às 5 horas, pega a linha 212, que traz os moradores de Bonfinópolis até o Terminal Novo Mundo, depois vai para a faculdade, onde cursa Relações Públicas, em seguida vai para o trabalho e, às 17 horas, faz o caminho de volta, sem hora para chegar, porque a disputa é grande por um espaço dentro do ônibus.

Ele, que já foi catador de papel, jornaleiro, botequeiro, vendedor de chinelos, engraxate e o jurubeba da dupla Jiló e Jurubeba, conta a própria vida em alto e bom som, com humor depreciativo, para deixar todos à vontade. “Já fui roubado duas vezes nesse ônibus. A última, foi uma loira bonita, rapaz. Porque você sabe, né? Homem é um bicho bobo. Não pode ver mulher bonita”, contava, enquanto os demais passageiros ora riam, ora respiravam fundo para se recuperar do riso anterior. “Eu trabalho com representação de vendas, porque eu falo pouco, né?” E continuava: “Sou de Patos de Minas, saí de lá com 1 ano e nunca mais voltei. Outro dia, uma tia me pediu uma foto. Daí mandei uma em que eu estava escondido atrás de uma pedra, porque sou muito feio, né?”

O humor de Corujito tem explicação. Ele é filho de repentista, aprendeu a fazer versos e a dupla Jiló e Jurubeba, que não existe mais, serviu para aprimorar isso. Questionado sobre alguma experiência curiosa que tenha vivido dentro do Eixo, Arnaldo responde em forma de verso: “Rapaz quer casar comigo, sou um cara trabalhador. Com chuva, não vou na roça, com sol também piorou. Eu sou muito feio para você e para nós dois fazer amor. (sic)”. Foi essa a resposta que ele deu a um homem que o assediou dentro do ônibus. E é com essa postura que ele se posiciona diante da vida, apesar das adversidades e da dificuldade enfrentada, diariamente, no “Cata Pobre”, “Escorrega Lá Vai Um”, “Vai Se Deus Quiser”, “Funerária Jesus Te Chama” ou “Espremedor de Queijo”. Todos, apelidos inventados por ele para o ônibus que o leva do Terminal Novo Mundo até Bonfinópolis.

Fonte: Jornal O Hoje