E como seria se pegasse fogo em um arranha-céu de Goiânia?

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Fiscalização para evitar casos como o de Santa Maria esbarra na falta de pessoal. Bombeiros refutam ideia de que escada Magirus seja fundamental para o combate ao fogo em prédios altos
Elder Dias 

No domingo, 27, o Brasil sofreu a segunda maior tragédia de sua história durante um evento de entretenimento. O fogo, a fumaça e o pânico na boate Kiss, em Santa Maria (RS), mataram mais de 230 jovens e só não superaram em horror e números tristes outro incêndio: o do Gran Circus Norte-Americano, em Niterói (RJ), no qual morreram cerca de 500 pessoas, 70% delas crianças. Ocorrido em 1961, o terrível episódio virou livro — “O Espetáculo Mais Triste da Terra”, do jornalista Mauro Ventura, lançado em 2011 pela editora Companhia das Letras.
O que se seguiu à comoção pela vítimas no Rio Grande do Sul — e persistirá, ainda por algum tempo — foi a busca de explicações para o ocorrido. Muitos consideram, com razão, que houve uma fatalidade passível de acontecer em qualquer outra localidade do País: Goiânia, Manaus, Recife, Uberlândia, Campinas, Joinville, Rio de Janeiro, enfim, a quantidade de cidades de médio e grande porte que se quisesse citar de modo totalmente aleatório. Isso se explica pelo fato de que as normas de segurança não são totalmente implementadas pelos estabelecimentos e a fiscalização pelo poder público geralmente é bastante aquém do que seria necessário, seja em número de profissionais para executar a tarefa, seja também na efetividade do trabalho daqueles que a fazem.

Dessa forma, em busca de diversão, a população se encontra exposta à sorte, ao acaso, em boates, teatros, cinemas, ginásios, igrejas, estádios etc. O problema, portanto, é ainda maior do que o aparente: as casas noturnas — cuja intensificação do foco de fiscalização ganhou vigor tão grande quanto o temor de um dono de imóvel assaltado na véspera, subitamente e como se nunca houvessem atentado para a questão — são só a ponta do iceberg. No caso particular da capital goiana, preocupa, entre outras tantas instituições, estabelecimentos e logradouros, o número de prédios de dezenas de andares que estão sendo erguidos nos últimos anos, notadamente em regiões como a do Jardim Goiás e Alto da Glória. Como seria o combate a um incêndio em um desses espigões? A capital está preparada para enfrentar algo grave assim?

Em Goiânia, a escada Magirus — equipamento utilizado tradicionalmente para combate ao fogo e resgate de vítimas em edifícios que estejam encurraladas — tem alcance máximo de 70 metros, segundo informações do Corpo de Bom­beiros. Isso corresponde, em termos de pavimentos, a uma torre de cerca de 25 andares. Ou seja, a depender dessa tática, todas as construções mais altas estariam de alguma forma desprotegidas em caso de qualquer incidente.

Mas não é bem assim que autoridades da área enxergam a questão. O major Claison Alencar Pereira, do Corpo de Bombeiros, afirma que a ideia de proceder ao resgate de vítimas em caso de incêndio por meio de escada Magirus é ultrapassada. “Desde os episódios nos edifícios Joelma e Andraus, na década de 70 (veja matéria correlata), em São Paulo, houve uma mudança considerável na concepção de evacuação em edifícios verticais e de estrutura e arquitetura das construções”, afirma.

Major Alencar contesta a eficácia da escada Magirus em caso de incêndio em altos edifícios. “Basta imaginar a lentidão da operação para subir e recolher um equipamento desse tipo no resgate de vítimas em edifícios de grande porte. O processo seria muito demorado e acabaria mais prejudicial do que eficiente”, diz. Em outras palavras: é mais fácil fazer com que haja escadas nos próprios prédios que deem segurança para a evacuação rápida do que apostar em um objeto instalado em um veículo que poderia comportar pouquíssimas pessoas em cada uma de suas descidas e subidas.
Níveis de proteção

Alencar explica que quanto maior é a edificação, maior também tem de ser o nível de proteção que ela oferece: as escadas e saídas de segurança dos prédios mais altos, por exemplo, são mais largas e com mais exigências a serem obedecidas. “Nas grandes torres temos escadas de nível proteção 4, à prova de fumaça”, cita. Nesses caso a escada é incombustível, com porta corta-fogo de fechamento automático, para que se garanta uma autonomia de até duas horas a quem transite por meio delas.

Em certas edificações é exigida também uma antecâmara entre a escada e o corredor, um espaço com portas corta-fogo na entrada e na saída, além de dutos que permitam que a fumaça saia e haja circulação de ar. “Um sobrado tem uma escada comum; já para um prédio habitado de grande porte, as exigências são totalmente diferentes”, diz a autoridade do Corpo de Bombeiros.

Além de facilitar a saída das pessoas, as exigências precisam também contemplar um fácil acesso por parte dos bombeiros para o combate ao fogo e o resgate de vítimas impedidas, por algum motivo, de deixar os prédios com as próprias forças. “O meio mais seguro e mais adequado é a própria construção que deve oferecer”, afirma o major Alencar. A sinalização eficaz nos edifícios também deve ser regra.

Não somente de fiscalização e de autoridades oficiais é feito o sucesso na redução do impacto de possíveis incêndios e outras catástrofes: a sociedade civil e o cidadão comum precisam fazer sua parte. Dessa forma, o bombeiro atenta para o fato de que os síndicos devem promover treinamento regulares, que podem incluir até simulações, para quem more ou trabalhe em edifícios — há várias empresas especializadas nesse tipo de consultoria. Em certos estabelecimentos, há também treinamentos obrigatórios, que são registrados pelo Corpo de Bombeiros.

Todos os prédios residenciais e comerciais, exceto os de habitação unifamiliar, têm de receber pelo menos uma vez por ano a fiscalização dos bombeiros. As exigências variam de acordo com o tamanho do edifício, a área ocupada e o tipo de ocupação. Além desse tipo de trabalho, desde julho do ano passado a corporação trabalha com o projeto Edificação Segura, pelo qual são visitados de forma aleatória, todos os estabelecimentos de uma determinada região da cidade.
Antes de poder funcionar, três “peneiras” dos Bombeiros
De acordo com a legislação vigente, toda edificação precisa passar por três etapas diante da fiscalização do Corpo de Bombeiros. A primeira é a entrega do projeto de engenharia, que precisa cumprir todas as exigências de que as normas tratam. Tais demandas variam de acordo com o tipo de construção. Com o projeto aprovado, a obra tem então autorização para ser iniciada. É esta a primeira “peneira”.

O segundo filtro é o chamado “Habite-se”, o documento que autoriza a utilização de um prédio destinado à habitação. É este o papel que vai comprovar que tal empreendimento foi construído seguindo-se as exigências determinadas pela legislação municipal e que se cumpriu tudo aquilo que estava previsto no projeto entregue para o começo de sua execução. Para tanto, os bombeiros verificam “in loco” se todas as providências previstas foram tomadas.

Por último, há a vistoria de funcionamento, que é uma exigência anual, já que a dinâmica da ocupação vai se alterando e pode haver necessidade de adequações. É obrigação de quem é responsável pelo imóvel fazer o comunicado de eventuais mudanças. Se isso não ocorrer, em caso de fiscalização o dono fica passível de sofrer sanções legais.

De julho a dezembro de 2012, o Corpo de Bombeiros fez 35 mil inspeções em Goiânia, 25 mil solicitadas e 10 mil proativas, em diversas regiões e com a tarefa descentralizada por quatro unidades — o 1º, o 2º e o 8º Batalhões e o Batalhão da Defesa Civil. Apesar de ser a instituição mais focada em casos extremos como o de Santa Maria, nas grandes ocorrências não há como os bombeiros darem conta da demanda. “Por isso é que dizemos que, apesar de integrarmos a Defesa Civil, esta é mais ampla, abrange muito mais aspectos e situações”, diz o major Alencar. De fato, além dos bombeiros, a estrutura da Polícia Militar, de trânsito e, principalmente, a rede hospitalar precisa se envolver de forma articulada no plano de contingência formulado na urgência de uma grande catástrofe.
Nos anos 70, dois incêndios e mais de 200 mortes
Dois incêndios marcaram o Brasil na primeira metade dos anos 70. Em fevereiro de 1972, o Edifício Andraus, em São Paulo, pegou fogo a partir do 2º andar. Houve 16 mortos e mais de 300 feridos. As cenas de pessoas desesperadas se jogando do prédio traumatizaram o País ao serem transmitidas pela TV. Es­petáculo mórbido se repetiu de for­ma ainda mais grave em fevereiro de 1974, quando o Edifício Joelma, também na capital paulista, foi tomado por um incêndio que tirou a vida de 187 pessoas, a partir de curto-circuito no 12º andar.

As duas ocorrências escancararam as evidentes deficiências da legislação brasileira para edificações. Um exemplo era o Código de Obras de São Paulo, elaborado em 1934, quando a cidade estava longe de alcançar 1 milhão de habitantes. As tragédias causaram um intenso debate com relação ao sistema de segurança, prevenção e combate a incêndios urbanos no Brasil, cujas deficiências foram evidenciadas nas duas tragédias.

Os avanços na legislação hoje permitem com que, obedecidas as normas, haja um risco relativamente bem menor da repetição de uma ocorrência de tamanha gravidade. Um exemplo simples é a possibilidade menor de desabamento até em relação a uma obra de primeiro mundo como o World Trade Cen­ter: suas torres gêmeas, atingidas pe­los aviões assassinos sequestrados pelos comandados de Osama bin Laden, não resistiram ao fogo e ruíram pelo fato de serem predominantemente constituídas de metal, que derreteu.

Obviamente, era uma situação imprevista e imprevisível por qualquer norma de segurança da época. Mas no Brasil, onde há o uso hegemônico do concreto entremeado por barras de aço — uma combinação mais resistente ao fogo —, provavelmente haveria menor risco de desabar um prédio atingido da mes­ma forma.
Transtornos causados pelo adensamento
Talvez a maior preocupação com os prédios gigantes em construção na capital não deva ser focada principalmente em relação a sua segurança, uma vez que a fiscalização e as próprias normas de construção da engenharia civil passaram a ter mecanismos de controle mais rígidos. O xis da questão passa a ser outro: onde Goiânia vai parar com tantas torres altas abrigando dezenas ou centenas de famílias e com quase dois carros, em média, para cada uma destas? Como combinar alto adensamento com trânsito fluido? É uma equação complicadíssima. “É uma questão de toda cidade grande e que Goiânia vai ter também de se adequar”, admite o secretário de Desen­vol­vi­mento Urbano Sustentável, Nelcivone Melo.

O grande problema é que as altas torres comportam estacionamento para os veículos dos moradores, mas não sobram vagas para os visitantes nas ruas. E o fluxo está ficando insuportável mesmo fora dos horários de pico. Nestes, então, a situação está caminhando para a irreversibilidade. Basta fazer um teste: saia do Parque Flamboyant por volta das 7 horas e tente chegar, por exemplo, ao Setor Bueno, em uma rota de centenas de pais de alunos, em meia hora. O trajeto, se fosse feito de bicicleta, não demoraria mais do que 15 minutos. Resta a ironia: torres imensas, condomínios de luxo, apartamentos com quatro suítes, carros importados e tudo o mais para, no fim, uma bicicleta ter o dobro de velocidade no deslocamento.
Ultramoderno, mas sem esgoto

Um exemplo de como modernidade não significa necessariamente sustentabilidade é o Burj Khalifa, em Dubai, hoje o prédio mais alto do mundo — no que será superado nos próximos meses pelo Sky City One, em construção na China e que terá 838 metros, nove a mais do que o atual recordista. Em termos de segurança, a supertorre dispõe do que há de mais moderno: há, por exemplo, abrigos totalmente climatizados a cada 35 andares, para que as pessoas possam aguardar socorro em caso de incêndio ou qualquer outra emergência. A estrutura é feita em concreto e aço e com tecnologia que dispõe a arquitetura de modo a dar ao Burj Khalifa toda a imponência sem que seja um gigante de pés de barro.

Mas há um “porém” sério demais para os tempos atuais: é que a torre da capital dos Emirados Árabes não foi construída de modo a dar solução para um grave problema de infraestrutura de Dubai: a falta de um sistema de esgoto para suprir a demanda de seus arranha-céus. O Burj Khalifa precisa do serviço de vários caminhões para retirar as 15 toneladas de dejetos produzidos por dia em seu interior. No melhor dos cenários, os veículos seguem para usinas de tratamento; no pior, o esgoto é jogado nas galerias pluviais e vai parar no mar do Golfo Pérsico. 

Fonte: Jornal Opção