Atraso na ferrovia só atrapalha

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Os moradores próximos às obras esperam com curiosidade pela passagem do trem, o que a Valec acha que vai acontecer em setembro.

Ao passo que a Ferrovia Norte-Sul carrega consigo o papel de dinamizar a economia do País, ela interfere, também, na vida de todos por onde passa. Essa já era uma consequência prevista quando do momento de elaboração e idealização do projeto. No entanto, a ideia inicial ressaltava apenas as vantagens da presença dos trilhos nas proximidades de casa. Com o atraso e paralisação da obra, tanto camponeses como citadinos destacam, sobretudo, as desvantagens do convívio arbitrário com a ferrovia que nunca termina.

Há pouco mais de dois anos, a menina Elineide Soares Brito, hoje com 18 anos, podia brincar com os amigos da Rua 10, no Setor Vivian Parque (2ª etapa), em Anápolis. Da mesma forma, era possível que ela conversasse e se encontrasse sempre com os vizinhos da frente. A chegada da obra no município acarretou a desapropriação das casas do outro lado da via e, apesar do tempo considerável, a garota, que cresceu no local, ainda não se acostumou com a situação. “É totalmente diferente. Ficou um deserto isso aqui”, descreve.

Na mesma situação, guardando na memória o cenário de antes da chegada dos trilhos, o lavrador Luiz Cintra, de 46 anos, recorda-se, saudoso, da água abundante do Ribeirão dos Gonçalves. “Antes, se você não soubesse nadar, não podia nem pular. Hoje, atravessa o rio quase a pé enxuto”, afirma. O córrego passa dentro da pequena Chácara Cachoeira, que lhe é posse desde quando nasceu. Ele cresceu no local e, 46 anos depois, não é admirável a estranheza em relação às trincheiras e à invasão do concreto no cenário, que, antes, fazia jus ao Ouro Verde que o município carrega como nome.

Também na zona rural da cidade, o acanhado fazendeiro Robledo Barbosa, 54 anos, que foi indenizado pelos seis alqueires da Fazenda Boa Vista, tomados pelos trilhos, queixa-se do atraso da obra e da perda da privacidade. Ele reconhece a importância da ferrovia para o Brasil, mas a rotina de oito anos atrás e a tranquilidade da vida que levava no campo foram drasticamente alteradas. A ferrovia abriu passagem e facilitou o acesso às terras de Robledo. Não bastassem os amantes dos esportes radicais que aproveitam as pontes e os trilhos para praticarem rapel e ciclismo, existe ainda a investida de ladrões de animais.

Elineide, Luiz e Robledo são três exemplos meio a uma infinidade de pessoas que tiveram a vida modificada com a chegada da ferrovia. Em Goiás, o impacto começou há pouco mais de oito anos, durante o governo Lula, que deu continuidade à obra no extremo norte do Estado, depois de bastante tempo parada. Vale lembrar que já são mais de 25 anos, desde Açailândia, no Maranhão, e cujo primeiro fim só deve chegar no segundo semestre de 2014, em Estrela D’Oeste, em São Paulo, depois de mais de R$ 6 bilhões gastos pela União. E primeiro fim, porque a Valec avalia a expansão do projeto original, levando os trilhos para até Belém (PA), no Norte, e até o município de Rio Grande (RS), no Sul.

Todos estão ansiosos para ver trem passar pelos trilhos

Queixas à parte, a curiosidade em ver o trem passar é unânime entre os que residem na margem da Norte Sul. Afinal, confortam-se eles, para alguma coisa deve servir aqueles trilhos postos ali. Elineide, por enquanto, guarda na imaginação a cena dos vagões e a sensação do barulho, que “deve ser bem alto, né?!”, questiona. O máximo que a menina viu foi um único vagão, que passou na porta de sua casa em março do ano passado ocupado por autoridades, entre elas, a presidente Dilma Rousseff, durante visita da mesma em Anápolis. A rua de Elineide e a visão frontal da simples casa se resumem a ferrovia.

Enquanto isso, no campo de Ouro Verde, Luiz Cintra e o filho Juan Diego, de 10 anos, preservam o desejo de ver logo como vai ser. O garoto, cuja vida diária se divide entre a calmaria do campo e as obrigações estudantis numa escola de Damolândia, município próximo, tenta arquitetar na mente a visão privilegiada que terá do quintal de casa, quando o trem começar a circular. O pai não deixa de pontuar, no entanto, o desconforto do barulho e os “tremeliques de casa”. Ele se recorda de que, na fase de construção, as vidraças tremiam todas, inclusive durante a noite e a madrugada, pois os operários não paravam os trabalhos.

Reforma
Em 2011, quando as obras foram retomadas em Anápolis, o pai de Elineide chegou a procurar a Valec para saber se ele seria ressarcido, em razão do impacto que poderia ser gerado na estrutura da casa. A menina conta que a família cogitou em vender o imóvel. A resposta dada pela empresa foi a de que não daria dinheiro, pois a casa não seria abalada, mas que ofertaria uma reforma. O pai da garota aceitou e os operários iniciaram a quebradeira, colocaram barras de ferro nas pilastras, mas logo foram interrompidos. “Meu pai mandou parar a reforma, porque estava ficando pior e malfeito”, relata.

Luiz Cintra, com sua simplicidade característica, ficou inerte, sem procurar saber se tinha algum direito. A ferrovia não chega a passar dentro da pequena propriedade, mas os trilhos foram colocados tão próximos à cerca que o trajeto do filho para a escola foi prejudicado. Antes, Juan era pego pelo ônibus municipal na porteira da chácara. Hoje, ele precisa caminhar cerca de um quilômetro a mais para chegar no ponto, pois a ferrovia obstruiu a passagem anterior. Fora isso, existe, ainda, o agravante, na visão do lavrador, de que o imóvel será desvalorizado, com a tranquilidade afetada. “Não tenho a menor dúvida disso”, afirma.

Tanta demora faz alguns duvidarem da conclusão

A reportagem mostrou na edição de ontem a situação dos 1.475 trilhos abandonados nos pastos do Sítio Bom Sucesso, em Jaraguá, há mais de três anos. A zeladora da propriedade, que fica na margem da ferrovia construída em 2009, relatou que, no início da obra, era dona de uma fazenda que também ficava exatamente do lado da Norte-Sul. Alice do Carmo Oliveira, de 42 anos, e o marido decidiram vender o imóvel, mas ela não se esquece da época. Com memória fresca e conhecimento de quem acompanhou tudo desde o início, a ex-professora não hesita em declarar: “Eu não acredito nem que um dia vou ver um trem passando nesses trilhos”. E arremata: “No Brasil é assim: quando acaba de fazer a obra, já está na época de reformar, porque demora tanto, que deteriora, estraga”.

Alice desabafa com a indignação de quem convive diariamente, de um lado, com a ferrovia vulnerável às intempéries climáticas e, do outro, com o dinheiro público em forma de trilhos abandonados no pasto próximo. “O pessoal vem aí, tira foto, inclusive moradores próximos. Isso aqui já virou piada”, conta. Em resposta, o Ministério dos Transportes, a quem a Valec é subordinada, explicou que os trilhos devem ser retirados do pasto assim que for assinado novo contrato com a licitante que dará continuidade à construção do pátio de Santa Isabel, a 206 quilômetros de Goiânia. A divulgação do resultado do processo licitatório é o mês de fevereiro deste ano.

Conclusão
Os trilhos estariam, conforme avaliação de técnicos, em condições para serem utilizados e devem ser instalados em julho. O ministério explicou, ainda, que as obras dos trechos da ferrovia que cortam Goiás tiveram os contratos de execução encerrados em 2012 e os serviços complementares estão em fase de licitação, mantendo a previsão de término para o mês de setembro, que é quando a presidente Dilma deve inaugura o trecho até o Porto Seco de Anápolis. Este falta, apenas, cerca de 380 metros para ser finalizado. A extensão de 40 quilômetros, entre Ouro Verde e Anápolis, já é dada como concluída.

Fonte: Jornal O Hoje