Pela primeira vez em Goiânia, prioridades no trânsito se invertem e o coletivo se sobrepõe ao individual
Fotos: Domingos Elias
Projeto piloto da ciclovia que vai ligar a Praça Cívica ao Terminal da Praça da Bíblia, cortando o Setor Universitário
Andréia Bahia
Mesmo quando a situação não é satisfatória, as pessoas temem a mudança e, por vezes, tendem a pensar de maneira egoística. Em relação às alterações que o poder público municipal vem fazendo na Rua 10 e Avenida Universitária, do Setor Universitário, um motorista de táxi que circula na região contou que comerciantes, donos de quiosques e taxistas da região são contra. Os comerciantes porque a reformulação extingue o estacionamento ao longo da avenida, os donos de pitdogs porque serão obrigados a remanejar e padronizar os quiosques, sem, no entanto, sair da avenida, e os taxistas reclamam da mudança do ponto para as ruas transversais. Olhando para o próprio umbigo, não conseguem perceber o alcance do esforço que está sendo feito para transformar as duas vias em um corredor preferencial de ônibus, o que trará vantagens não apenas para o usuário do transporte coletivo, mas para ciclistas, pedestres e veículos.
Não se trata apenas de uma mudança física na avenida, mas de um novo modelo de compartilhamento da cidade, no qual o coletivo se sobrepõe ao individual. “É impossível prover espaço infinito para o automóvel e há que se restringir o espaço do carro para priorizar o transporte coletivo”, justifica o presidente da Companhia Municipal de Transporte Coletivo (CMTC), José Carlos Xavier Grafite. Os corredores de transporte coletivo têm sido a solução encontrada para a chamada mobilidade urbana, que entra em decadência no mesmo ritmo em que as cidades crescem. “A mobilidade urbana tem se apresentado como um gargalo para as cidades grandes”, afirma Grafite. A partir de 500 mil habitantes já se faz notar prejuízos à acessibilidade plena dos moradores e, quanto maior a cidade, maiores os problemas, que são piorados em municípios que experimentam uma expansão desordenada, como Goiânia. Essa restrição à mobilidade urbana resulta no aumento de acidentes e na criação de pontos insuportáveis no trânsito, observa Grafite. Situação que em Goiânia é agravada pela grande quantidade de carros. Quase um por habitante. “Quanto maior a renda da população, maior o número de carros e menor o espaço para os ônibus”, explica Grafite. O que contradiz o eixo principal da moderna mobilidade urbana em todo mundo, que é o transporte coletivo.
Só a inversão de prioridades no trânsito é capaz de reestruturar o sistema de transporte, uma vez que o ônibus é universal, reduz acidentes e congestionamentos e é mais regular. Um só ônibus retira 70 carros da rua. Além disso, atende uma das principais demandas do mundo contemporâneo, a redução do impacto ambiental. “Mesmo usando óleo diesel (que é mais poluente), o ônibus produz menos poluição atmosférica e sonora”, atesta o presidente da CMTC.
O ônibus é o veículo prioritário no sistema de transporte que está sendo implantado no eixo universitário e para lhe proporcionar mais fluidez era preciso aumentar o espaço de circulação dele na avenida. As margens da avenida são ocupadas, à esquerda, pelo canteiro central, e, à direita, pela calçada e pelo estacionamento. “Po-deria até se pensar em reduzir a ilha central, mas o ônus ambiental dessa escolha seria muito grande”, explica Gra-fite. O resultado dessa opção já é visto em Goiânia na Avenida Anhanguera, onde se sacrificou o verde para construir as plataformas do transporte coletivo. “Não se deseja isso para a cidade”, argumenta Grafite.
A segunda alternativa era justamente a proibição de estacionamentos ao longo da avenida. Os comerciantes reclamaram da medida porque vai impedir que o cliente pare na porta da loja. “Mas esse privilégio de sair de casa e estacionar na porta do escritório se esgotou na década de 70”, afirma o presidente da CMTC. Os tempos modernos exigem que, aqueles que andam e carro, estacionem distante do local desejado ou pague estacionamento privado. Essa é outra tendência mundial das grandes cidades. “É o ônus do crescimento que todos têm que pagar.”
A instalação de corredores preferenciais para o transporte coletivo não é uma aventura, apesar de o eixo universitário ser o piloto da experiência em Goiânia. Isso porque a Avenida 10, que liga o Centro da cidade ao Terminal da Bíblia, passando por um centro universitário e dois hospitais que são referências na cidade, o das Clínicas e o Araújo Jorge, apresenta sinais evidentes de deteriorização decorrente dessa desorganização provocada pelo crescimento desordenado da cidade.
No Brasil, o modelo foi implantado com sucesso na cidade do Rio de Janeiro e em Londrina e, no exterior, a referência é o Transantiago, no Chile, que cobre centenas de quilômetros.
O modelo preferencial a ser adotado é diferente do sistema da Avenida Anhanguera, que é exclusivo. Na Rua 10 e Avenida Universitária, em certos trechos, a pista da direita será compartilhada com carros – quando o veículo for fazer uma conversão à direita ou entrar na garagem. Serão instaladas câmeras fotográficas em pontos estratégicos com objetivo de inibir os motoristas a invadirem a faixa destinada exclusivamente aos ônibus. A pista será monitorada 24 horas. O que vai representar essa mudança? A redução em 40% na média de velocidade que hoje os ônibus atingem naquela avenida. Eles andam em média a 10 km por hora e deve passar a desenvolver a velocidade de 18 km por hora. Se hoje, gastam de 18 a 20 minutos, vão transcorrer o trecho em no máximo 10 minutos.
O eixo universitário será o primeiro a ser adaptado a esse novo modelo de mobilidade urbana e, depois dele, outros 14 corredores vão passar pela mesma reformulação. Cada um atendendo a sua própria característica. “O modelo a ser implantado na Avenida 24 de Outubro não será o mesmo dos demais, mas a diretriz é a mesma”, antecipa Grafite. Ou seja, faixa preferencial e fim do estacionamento. A prefeitura pretende transformar 102 quilômetros da cidade em corredores preferenciais. “Estamos inaugurando uma nova era, na qual não se depende da construção de um metrô para resolver os problemas, diz”. Segundo ele, a rede de transporte coletiva a ser construída em Goiânia vai contar com BRT (bus rapid transit), um sistema de ônibus de alta capacidade que prevê um serviço rápido, ligando o Recanto dos Bosques, ao norte da capital, ao Terminal Cruzeiro, ao sul, em uma extensão de 22 km e com capacidade para cerca de 100 mil passageiros por dia, e os 15 corredores preferenciais. O governo do Estado deve implantar o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), uma espécie de metrô, no Eixo Anhanguera. Soluções diferentes para problemas diferentes.
A outra novidade a ser experimentada no eixo universitário é a construção de uma ciclovia ao longo de toda avenida. Diferente da ciclofaixa, na qual o ciclista compartilha o trânsito com os veículos, a ciclovia é uma faixa exclusiva para ciclistas. A ideia é oferecer ao público universitário, mais propenso à novidades, um espaço seguro para que ele possa ir de bicicleta para a faculdade. “Inicialmente, a bicicleta tem um caráter lúdico, mas aos poucos vai agregar novos públicos”, aposta Grafite. Onde for possível, vão ser construídas outros espaços que favorecem o ciclismo na cidade.
O arquiteto e urbanista, Fernando Camargo Chapadeiro, que é mestre em Transporte pela UnB, diz que o favorecimento ao uso da bicicleta envolve mais coisas que a construção de uma ciclovia. “A construção de um trecho não vai promover o uso de bicicleta. É preciso que essa iniciativa seja articulada dentro de um projeto de construção de uma rede que favoreça o uso da bicicleta.” Como projeto piloto, afirma Fernando Chapadeiro, que é professor de Arquitetura e Urbanismo da UEG e PUC, a iniciativa merece elogios. Como ação isolada, causa preocupação. Afinal, como as pessoas vão chegar à Avenida 10 para usar a ciclovia? “Não se pode dizer, a partir dessa única iniciativa, que Goiânia tem ciclovia.”
O planejamento de ciclovias requer planejamento cicloviário e definição de etapas de implantação da rede, explica Chapadeiro. Rede composta por ciclovias, ciclofaixas e estacionamentos, além de campanhas para incentivar o uso da bicicleta. “A Praça Universitária é o que chamamos de polo gerador de viagem e o ciclista precisa de estacionamento para deixar a bicicleta e ir para faculdade ou a algum barzinho da avenida.”
Segundo o professor, há cinco requisitos que favorecem o uso da bicicleta: atratividade, a pista deve ser iluminada e sombreada por vegetação; linearidade, não pode ser muito sinuosa; coerência com a unidade visual, ser bem identificada; segurança, bem sinalizada e, nas interseções, oferecer visibilidade e previsibilidade, ou seja, o ciclista tem de ver e ser visto e poder prever a ação do veículo na interseção, e, por fim, conforto, ter uma superfície regular e antiderrapante. “As calçadas da avenida também merecem a mesma atenção em relação ao conforto, senão corre-se o risco de o pedestre invadir a ciclovia”, observa Chapadeiro.
Uma preocupação que coincide com a do prefeito Paulo Garcia, para quem o projeto precisa beneficiar o elo mais fraco da locomoção urbana, que é o pedestre. Segundo ele, o projeto prevê a padronização do calçamento dentro de critérios técnicos que ofereça segurança para a locomoção do pedestre e impermeabilidade do solo. O prefeito lembra que nos 2,5 km de extensão do corredor universitário as pessoas terão a disposição a internet sem fio. “Esse projeto foi executado por um dos escritórios de maior qualificação no País sobre mobilidade urbana, foi pensado exaustivamente nos últimos meses e feito dentro dos mais rígidos padrões técnicos da atualidade”, garante Paulo Garcia.
Em relação ao projeto no todo, o arquiteto Fernando Chapadeiro, que mora na Avenida 10, é plenamente favorável, inclusive à remoção do estacionamento e o fechamento dos retornos. “Quem está de carro tem que dar a volta.” Ele lembra que há décadas o privilegiado no trânsito foi o veículo em detrimento dos outros meio de transporte. “O carro sempre drenou recurso em infraestrutura desproporcional a retorno que oferecia em termo de número de beneficiados.”
É hora daqueles que sempre foram beneficiados com estacionamento na porta e liberdade para usar a via pública como se fosse particular abrir mão do conforto em prol do interesse coletivo. Assim caminham a cidades modernas.
Fonte: Jornal Opção