A história panfletária de Goiás - Parte 2
Da forma como os fatos são colocados pela historiografia, Pedro Ludovico seria o mito responsável pelo desenvolvimento de um Estado que, até então, vivia nas trevas, sob o jugo dos carrascos oligarcas da Cidade de Goiás
Victor Amorim
Especial para o Jornal Opção
Especial para o Jornal Opção
“A história não perdoa os fracos”
(Pedro Ludovico Teixeira)
(Pedro Ludovico Teixeira)
Como antecipado no ensaio publicado na edição nº 1933 do Jornal Opção, passo, nesta oportunidade, a abordar o segundo grande mito da história goiana, Pedro Ludovico Teixeira, responsável por tirar Goiás do jugo dos velhos oligarcas da Cidade de Goiás e trazer às luzes para o Planalto Central, acabando com as práticas coronelistas e com os vícios da política caricata da República Velha.
A história é feita de fatos e versões. Ao lermos um livro de história temos sempre a sensação de que os acontecimentos não se passaram da exata forma como estão descritos. Do mesmo modo, nunca saberemos se as ideias e as motivações psicológicas dos protagonistas deram-se conforme as avaliações dos historiadores.
Busca-se, no entanto, por meio de um estudo científico dissociado da manipulação política dos fatos, depurar a narrativa histórica das inverdades produzidas pela propaganda oficial dos governos e demais grupos que, por determinado período, dominam o poder político.
É esse o propósito que norteia o presente ensaio em sua busca pela revisão da historiografia goiana, especialmente no tocante à Revolução de 1930 em Goiás. Nos dizeres de Paulo Bertran, a história do Estado, por meio de uma espécie de exorcismo, necessita passar por um “processo de depuração”.
O fantasma que ronda os livros e estudos especializados é o mito intocável de Pedro Ludovico Teixeira e seus asseclas, responsáveis pela Revolução de 1930. Deixemos de lado a perspectiva maniqueísta e o endeusamento de personagens políticos.
A construção da cidade de Goiânia está relacionada com a vitória da Aliança Nacional, em 1930, quando se deu a tomada do poder federal por Getúlio Vargas.
A nomeação de Pedro Ludovico como interventor em 23 de novembro de 1930 exemplifica tal propósito. As ações do interventor voltaram-se para a redução do poder das tradicionais famílias vilaboenses.
Os “motivos oficiais” divulgados, como as más condições físicas da cidade de Goiás e o fato da cidade estar cercada pela Serra Dourada — o que impediria sua expansão urbana —, são fatores secundários para justificar a mudança.
Em seu relatório de governo (1930-1933), questionava Pedro Ludovico: “Como poderia dirigir e acionar o desenvolvimento do colossal território goiano uma cidade como Goiás, isolada, trancada pela tradição e pelas próprias condições topográficas ao progresso”?
Adiante, no próprio documento, o interventor reponde a sua indagação, afirmando que o desenvolvimento do Estado exige “uma capital acessível, que irradie progresso e marche na vanguarda, coordenando a vida política e estimulando a economia, ligada à maioria dos municípios por uma rede rodoviária planificada”.
Com efeito, constata-se que, para Pedro Ludovico, só poderia haver progresso com desenvolvimento. E, nesse sentido, nas palavras do historiador Itami Campos: “Como a Cidade de Goiás é expressão do atraso, Goiânia vai ser símbolo do progresso, expressão de um Estado que rompe com seu passado e de um povo que se mostra capaz de construir seu futuro ativamente”.
Portanto, a despeito dos periféricos argumentos relativos à saúde pública e às condições sanitárias e habitacionais da cidade de Goiás, sobreleva-se a questão política como motivação central para a transferência da capital.
Ora, era na velha capital que se concentrava o foco oposicionista ao governo de Pedro Ludovico. Nada mais viável a uma administração que se propunha a implementar uma reforma estrutural no Estado do que um clima alheio às agitações políticas e sociais.
Apesar de, oficialmente, Pedro Ludovico não ter mencionado os fatores políticos como determinantes para a ideia da transferência durante o processo de mudança, no discurso de inauguração de Goiânia, afirma: “Confesso, fazendo justiça à velha Goiás, que não foram motivos de ordem sanitária que pesaram no meu espírito para retirar-lhe a primazia de ser a metrópole goiana. É um centro urbano relativamente saudável, apenas com uma endemia de paratifo, como se dá em inúmeras cidades e capitais do Brasil. Causas de origem econômica, política e social influíram poderosamente para que lhe cerceasse o privilégio de que usufruía”.
Muito há que se observar nas entrelinhas do discurso histórico sobre a construção de Goiânia e a transferência da capital. A análise e a valoração de tais eventos históricos — como positivos ou negativos para o desenvolvimento do Estado de Goiás — desemboca na aferição final do papel de Pedro Ludovico Teixeira.
Da forma como a questão é colocada pela historiografia, Pedro Ludovico torna-se o mito responsável pelo desenvolvimento de um Estado que, até então, vivia nas trevas, sob o jugo dos carrascos oligarcas da Cidade de Goiás.
Desse modo, a tacanha análise maniqueísta reduz a avaliação dos eventos históricos e de seus personagens decisivos na ótica dual do bem e do mal.
Em tais termos, emerge a visão de um Pedro Ludovico salvador, positivo, progressista, abnegado em prol do interesse do povo goiano, ideal de homem público. Enfim, a personificação do bem. Noutro lado, temos a figura dos coronéis: velhos, ultrapassados, comprometidos exclusivamente com seus interesses privados. Ou seja, são os maus.
É uma visão realmente honesta e científica da história goiana ao longo desses últimos três séculos? Será que, antes de Pedro Ludovico, seria Goiás uma terra infértil, na qual toda e qualquer forma de desenvolvimento e progresso era obstada?
Nessa perspectiva, o historiador Paulo Bertran propõe revisões necessárias na história de Goiás: o paradigma da decadência, o paradigma de Goiânia e o paradigma da penetração do capitalismo em Goiás.
Vale transcrever a elaborada análise de Paulo Bertran sobre o primeiro paradigma: “Há duas ou três coisas sobre a história de Goiás que é oportuno despoluir para obtermos objetos mais úteis e iluminados, para nosso deleite e sapiência, e para consumo de futuras gerações. Um deles é o paradigma da decadência de Goiás no passado, que conforme o sentir de alguns escritores iria desde a abrupta queda da mineração em 1780 até um variável fim (segundo uns até 1914 com a entrada da estrada de ferro), segundo outros até 1937, com o Estado Novo e a construção de Goiânia. Haja decadência! No caso extremo nada menos do que 157 anos de ‘decadência’. Deve ser erro de denominação, ou erro de conceito. Deve ser, quem sabe, puro e simples desconhecimento, falta de pesquisas sobre um século inteiro, o século 19. Em dois séculos e meio de história de Goiás quase que de todo ignora-se um século inteiro, o da ‘decadência’, justo quando em todos os quadrantes nasciam centenas de fazendas e dezenas de povoados!”.
Sobre o paradigma de Goiânia, escreve Paulo Bertran: “A construção da nova capital se deu justo no bojo da fortíssima construção ideológica e institucional da Revolução de 30 e da ditadura de 37, que entre nós fixam, na verdade, a República autoritária e o Estado patriarcal brasileiro. E processou-se em tais condições, que arrasou, aniquilou por inteiro a noção de continuidade na história goiana. E não só de continuidade: provocou a ruptura do tecido cultural antigo, urdido com a velhice de dois séculos pregressos de história. E a ruptura daquilo que hoje se chama goianidade, um desejo de identidade que Goiânia, banalizada como qualquer outra capital brasileira, deseja assumir tardiamente, para transformar em mito, para fins diversos, econômicos e culturais. É muito provável que toda visão, toda interpretação, toda versão histórica, econômica, antropológica sobre Goiás (...), seja nos estudos de História, de Ciências Sociais ou os Literários, quase todos se fizeram com os óculos reducionistas, estadonovistas, da visão de poder de Goiânia (...) São os óculos de Goiânia. A visão estadonovista todo-poderosa de Goiânia. Em certo sentido, a ótica do opressor”.
A história é feita de fatos e versões. Ao lermos um livro de história temos sempre a sensação de que os acontecimentos não se passaram da exata forma como estão descritos. Do mesmo modo, nunca saberemos se as ideias e as motivações psicológicas dos protagonistas deram-se conforme as avaliações dos historiadores.
Busca-se, no entanto, por meio de um estudo científico dissociado da manipulação política dos fatos, depurar a narrativa histórica das inverdades produzidas pela propaganda oficial dos governos e demais grupos que, por determinado período, dominam o poder político.
É esse o propósito que norteia o presente ensaio em sua busca pela revisão da historiografia goiana, especialmente no tocante à Revolução de 1930 em Goiás. Nos dizeres de Paulo Bertran, a história do Estado, por meio de uma espécie de exorcismo, necessita passar por um “processo de depuração”.
O fantasma que ronda os livros e estudos especializados é o mito intocável de Pedro Ludovico Teixeira e seus asseclas, responsáveis pela Revolução de 1930. Deixemos de lado a perspectiva maniqueísta e o endeusamento de personagens políticos.
A construção da cidade de Goiânia está relacionada com a vitória da Aliança Nacional, em 1930, quando se deu a tomada do poder federal por Getúlio Vargas.
A nomeação de Pedro Ludovico como interventor em 23 de novembro de 1930 exemplifica tal propósito. As ações do interventor voltaram-se para a redução do poder das tradicionais famílias vilaboenses.
Os “motivos oficiais” divulgados, como as más condições físicas da cidade de Goiás e o fato da cidade estar cercada pela Serra Dourada — o que impediria sua expansão urbana —, são fatores secundários para justificar a mudança.
Em seu relatório de governo (1930-1933), questionava Pedro Ludovico: “Como poderia dirigir e acionar o desenvolvimento do colossal território goiano uma cidade como Goiás, isolada, trancada pela tradição e pelas próprias condições topográficas ao progresso”?
Adiante, no próprio documento, o interventor reponde a sua indagação, afirmando que o desenvolvimento do Estado exige “uma capital acessível, que irradie progresso e marche na vanguarda, coordenando a vida política e estimulando a economia, ligada à maioria dos municípios por uma rede rodoviária planificada”.
Com efeito, constata-se que, para Pedro Ludovico, só poderia haver progresso com desenvolvimento. E, nesse sentido, nas palavras do historiador Itami Campos: “Como a Cidade de Goiás é expressão do atraso, Goiânia vai ser símbolo do progresso, expressão de um Estado que rompe com seu passado e de um povo que se mostra capaz de construir seu futuro ativamente”.
Portanto, a despeito dos periféricos argumentos relativos à saúde pública e às condições sanitárias e habitacionais da cidade de Goiás, sobreleva-se a questão política como motivação central para a transferência da capital.
Ora, era na velha capital que se concentrava o foco oposicionista ao governo de Pedro Ludovico. Nada mais viável a uma administração que se propunha a implementar uma reforma estrutural no Estado do que um clima alheio às agitações políticas e sociais.
Apesar de, oficialmente, Pedro Ludovico não ter mencionado os fatores políticos como determinantes para a ideia da transferência durante o processo de mudança, no discurso de inauguração de Goiânia, afirma: “Confesso, fazendo justiça à velha Goiás, que não foram motivos de ordem sanitária que pesaram no meu espírito para retirar-lhe a primazia de ser a metrópole goiana. É um centro urbano relativamente saudável, apenas com uma endemia de paratifo, como se dá em inúmeras cidades e capitais do Brasil. Causas de origem econômica, política e social influíram poderosamente para que lhe cerceasse o privilégio de que usufruía”.
Muito há que se observar nas entrelinhas do discurso histórico sobre a construção de Goiânia e a transferência da capital. A análise e a valoração de tais eventos históricos — como positivos ou negativos para o desenvolvimento do Estado de Goiás — desemboca na aferição final do papel de Pedro Ludovico Teixeira.
Da forma como a questão é colocada pela historiografia, Pedro Ludovico torna-se o mito responsável pelo desenvolvimento de um Estado que, até então, vivia nas trevas, sob o jugo dos carrascos oligarcas da Cidade de Goiás.
Desse modo, a tacanha análise maniqueísta reduz a avaliação dos eventos históricos e de seus personagens decisivos na ótica dual do bem e do mal.
Em tais termos, emerge a visão de um Pedro Ludovico salvador, positivo, progressista, abnegado em prol do interesse do povo goiano, ideal de homem público. Enfim, a personificação do bem. Noutro lado, temos a figura dos coronéis: velhos, ultrapassados, comprometidos exclusivamente com seus interesses privados. Ou seja, são os maus.
É uma visão realmente honesta e científica da história goiana ao longo desses últimos três séculos? Será que, antes de Pedro Ludovico, seria Goiás uma terra infértil, na qual toda e qualquer forma de desenvolvimento e progresso era obstada?
Nessa perspectiva, o historiador Paulo Bertran propõe revisões necessárias na história de Goiás: o paradigma da decadência, o paradigma de Goiânia e o paradigma da penetração do capitalismo em Goiás.
Vale transcrever a elaborada análise de Paulo Bertran sobre o primeiro paradigma: “Há duas ou três coisas sobre a história de Goiás que é oportuno despoluir para obtermos objetos mais úteis e iluminados, para nosso deleite e sapiência, e para consumo de futuras gerações. Um deles é o paradigma da decadência de Goiás no passado, que conforme o sentir de alguns escritores iria desde a abrupta queda da mineração em 1780 até um variável fim (segundo uns até 1914 com a entrada da estrada de ferro), segundo outros até 1937, com o Estado Novo e a construção de Goiânia. Haja decadência! No caso extremo nada menos do que 157 anos de ‘decadência’. Deve ser erro de denominação, ou erro de conceito. Deve ser, quem sabe, puro e simples desconhecimento, falta de pesquisas sobre um século inteiro, o século 19. Em dois séculos e meio de história de Goiás quase que de todo ignora-se um século inteiro, o da ‘decadência’, justo quando em todos os quadrantes nasciam centenas de fazendas e dezenas de povoados!”.
Sobre o paradigma de Goiânia, escreve Paulo Bertran: “A construção da nova capital se deu justo no bojo da fortíssima construção ideológica e institucional da Revolução de 30 e da ditadura de 37, que entre nós fixam, na verdade, a República autoritária e o Estado patriarcal brasileiro. E processou-se em tais condições, que arrasou, aniquilou por inteiro a noção de continuidade na história goiana. E não só de continuidade: provocou a ruptura do tecido cultural antigo, urdido com a velhice de dois séculos pregressos de história. E a ruptura daquilo que hoje se chama goianidade, um desejo de identidade que Goiânia, banalizada como qualquer outra capital brasileira, deseja assumir tardiamente, para transformar em mito, para fins diversos, econômicos e culturais. É muito provável que toda visão, toda interpretação, toda versão histórica, econômica, antropológica sobre Goiás (...), seja nos estudos de História, de Ciências Sociais ou os Literários, quase todos se fizeram com os óculos reducionistas, estadonovistas, da visão de poder de Goiânia (...) São os óculos de Goiânia. A visão estadonovista todo-poderosa de Goiânia. Em certo sentido, a ótica do opressor”.
Entre a propaganda e a realidade
Ao contrário do que se difundiu, a Revolução de 1930 em Goiás não propiciou nenhuma alteração em termos de estamento social. A despeito da aparente supressão do sistema oligárquico tradicional, a direção dos desígnios do Estado continuou nas mãos de uma classe economicamente dominante.
A bem da verdade, as práticas e a lógica da política em Goiás foram reformuladas em decorrência da centralização do poder na figura do presidente da República e a consequente reconfiguração do pacto federativo no Brasil.
Os Estados já não gozavam daquela autonomia — quase independência — conferida desde os idos do governo Campos Salles (1898-1902), com o “pacto dos governadores”. As ações administrativas dos interventores deveriam estar em consonância com um programa de governo estabelecido pelos intelectuais de Getúlio Vargas.
Nesse viés, com o intuito de demonstrar o pleno atendimento a tais diretrizes e transmitir uma ideia de transformação da prática política desenvolvida, o governo revolucionário de 1930 encontra na propaganda oficial seu principal instrumento.
Como demonstração de tal realidade, cumpre analisar a convergência ou divergência entre os fatos e as supostas conquistas anunciadas por Pedro Ludovico em relatório enviado ao presidente da República sobre seus primeiros anos de intervenção (1930-1933).
Já no início do documento, Pedro Ludovico busca demarcar a diferença supostamente existente entre os antigos e os novos governantes: “Combatendo, dia-a-dia, a rotina estacionária vamos infiltrando no seio do povo e das administrações as ideias de progresso, consubstanciando-as em atos concretos que servem de exemplo, trazendo resultados imediatos”.
De fato, ao ler o referido relatório, chega-se à conclusão que em Goiás os tempos eram outros e que houve uma verdadeira ruptura na vida política do Estado, na esteira do advento da “Nova República”.
Todavia, ao cotejar as informações constantes no relatório, de 1930-1933, com os reais acontecimentos, percebe-se uma nítida manipulação de dados e uma incontestável deturpação da história.
Inicialmente, o relatório pretende demonstrar as transformações implementadas no campo da educação. Foi destacado que, diferentemente do que se observava nos governos anteriores, o decreto nº 1.656, de 1931, instituía um critério meritório para nomear as “melhores alunas” das escolas normais do Estado no cargo de “professor primário”. Ocorre, contudo, que o número de normalistas nomeadas em 1931 correspondeu a apenas um terço das professoras nomeadas naquele período. Afinal, qual foi o critério adotado para os dois terços restantes?
Ademais, por qual razão o critério meritório seria utilizado para apenas um setor da administração? E, para os demais cargos da administração estadual, quais seriam os critérios utilizados? O relatório queda-se silente a tal respeito. Resta claro, assim, que as práticas clientelistas de cabide de empregos, de nomeações de parentes, protegidos e correligionários continuavam.
Conforme o relatório, entre os anos de 1930 e 1933, o ensino primário teria sofrido uma significativa expansão, sendo criados oito novos grupos escolares. Entretanto, ao se analisar os dados oficiais, constata-se que o número de grupos criados entre 1930 e 1933 foi inferior ao apresentado no relatório. Enquanto foram criados nove grupos entre 1927 e 1929 e nos anos de 1930 a 1931 instituiu-se apenas seis grupos escolares (Campo Formoso, Ipameri, Cristalina, Pirenópolis, Vianópolis e Santana).
Outra inverdade relativa ao sistema educacional reproduzida no relatório refere-se ao número de alunos que estavam recebendo educação regular. Consoante o documento, no ano de 1933, estariam frequentando o ensino primário 31.327 alunos. Noutra via, conforme “relatório apresentado ao Dr. Getúlio Vargas” de 1939, no ano de 1933, 22.946 alunos estavam matriculados no ensino primário e, destes, 15.750 frequentavam a escola. Ora, ainda que as informações contidas no relatório de 1933 estivessem sujeitas à confirmação, não se mostra plausível que o relatório de 1939 tenha subestimado os dados de 1933. Logo, evidencia-se que, na verdade, o governo revolucionário tenha superestimado os dados de 1933.
Em outro ponto do relatório, o governo revolucionário, ao criticar o comportamento administrativa das antigas oligarquias, que só se preocuparam com a capital do Estado, enfatizou a importância de implementar melhorias e fomentar o desenvolvimento da região norte de Goiás. Contudo, na realidade, vislumbrou-se que a preocupação com o norte goiano ficou apenas no plano do discurso, não sendo apresentada nenhuma medida concreta de ajuda àquela região. Pedro Ludovico limitou-se a conclamar o apoio do governo federal no sentido de viabilizar a navegação fluvial com alternativa para a comunicação comercial entre os Estados de Goiás, Pará, Mato Grosso e Maranhão.
No campo do serviço sanitário — uma das bandeiras a serem levantadas por Pedro Ludovico para justificar a mudança da capital —, o governo, ao reconhecer no relatório a limitação nos serviços de higienização pública, colocou a questão nas mãos do governo federal: “O problema da saúde pública é tipicamente nacional. Só o governo federal já pelos seus recursos materiais, já pelo seu prestígio poderia resolvê-lo”.
Adiante, em mensagem encaminhada à Assembleia Legislativa no ano de 1936, reconhece Pedro Ludovico que “efetivamente a atuação da Diretoria Geral do Serviço Sanitário no campo da higiene e profilaxia só se fez sentir na sede do governo”.
O famigerado relatório de 1933 dedica um capítulo inteiro à análise do contrato de fornecimento de força e luz firmado entre o Estado de Goiás e a empresa Guedes & Ratto & Cia, em 1920. Segundo o documento, “os serviços de iluminação pública e particular desta capital [Cidade de Goiás] representa índice mais flagrante do protecionismo que campeou às soltas, estimulando pela politicagem no regime em boa hora deposto (...) o que nos parece iníquo, portanto condenável, porque não é sequer compreensível, que os 56 municípios componentes do Estado, a maioria dos quais ainda não pode nem poderá tão cedo instalar usinas de eletricidade nas respectivas sedes, que vivem às escuras, sejam forçadas por 30 anos, a concorrer para o custeio de um caríssimo e medíocre serviço social, que só aproveita a população da cidade de Goiás”.
A despeito da aparente crítica e aversão aos termos do referido contrato, o governo revolucionário, na oportunidade de reformulação contratual por meio do decreto nº 4.105, de 9 de dezembro de 1933, não revogou a maior parte das cláusulas caracterizadoras do favoritismo. Praticamente, o contrato não sofreu nenhuma alteração substancial, permanecendo todos os pontos de favoritismo então existentes no contrato de 1920, inclusive no tocante a concessão de privilégio do serviço por 30 anos e a isenção de impostos.
Tal incongruência entre a propaganda oficial e a prática é precisamente identificada pela história do espanhol Luis Palacín que, denominando os governos de verdadeiros mestres da ficção científica, pontua: “Ao passarmos o ‘antes’ para o ‘agora’, isto é, ao passarmos da denúncia dos males passados à exposição das realizações da Revolução após três anos no governo, invade-nos e acompanha-nos durante toda a leitura uma sensação desassossegante: a de existir uma enorme desproporção entre a magnitude dos agravos e o diminuto de realizações”.
Ante a observação feita por Luis Palacín, a professora Ana Lúcia da Silva pondera: “Diante do mesmo quadro desenhado no relatório, diante da discrepância entre as promessas e as realizações, entre o discurso e a prática, nós, ao contrário de Palacín, não achamos que os governos sejam os verdadeiros mestres da ficção científica. Eles não trabalham com ficção. Eles trabalham com a realidade, falsificando-a. Nós achamos que os governos são os verdadeiros mestres da falsificação da realidade e, se os homens e suas relações aparecem invertidos como em uma câmara escura, é porque a ideologia cumpriu o seu papel”.
Observada a existência de flagrante dissonância entre o discurso oficial — com o fito de imprimir uma ideia de verdadeira revolução — e o mundo dos fatos, constata-se que as práticas de dominação política foram alguns dos únicos aspectos que se transformaram com a Revolução de 1930, restando a melhoria nas condições da população e a evolução das práticas democráticas suspensas na linha do tempo, entre o “antes” e o “depois”.
Ao contrário do que se difundiu, a Revolução de 1930 em Goiás não propiciou nenhuma alteração em termos de estamento social. A despeito da aparente supressão do sistema oligárquico tradicional, a direção dos desígnios do Estado continuou nas mãos de uma classe economicamente dominante.
A bem da verdade, as práticas e a lógica da política em Goiás foram reformuladas em decorrência da centralização do poder na figura do presidente da República e a consequente reconfiguração do pacto federativo no Brasil.
Os Estados já não gozavam daquela autonomia — quase independência — conferida desde os idos do governo Campos Salles (1898-1902), com o “pacto dos governadores”. As ações administrativas dos interventores deveriam estar em consonância com um programa de governo estabelecido pelos intelectuais de Getúlio Vargas.
Nesse viés, com o intuito de demonstrar o pleno atendimento a tais diretrizes e transmitir uma ideia de transformação da prática política desenvolvida, o governo revolucionário de 1930 encontra na propaganda oficial seu principal instrumento.
Como demonstração de tal realidade, cumpre analisar a convergência ou divergência entre os fatos e as supostas conquistas anunciadas por Pedro Ludovico em relatório enviado ao presidente da República sobre seus primeiros anos de intervenção (1930-1933).
Já no início do documento, Pedro Ludovico busca demarcar a diferença supostamente existente entre os antigos e os novos governantes: “Combatendo, dia-a-dia, a rotina estacionária vamos infiltrando no seio do povo e das administrações as ideias de progresso, consubstanciando-as em atos concretos que servem de exemplo, trazendo resultados imediatos”.
De fato, ao ler o referido relatório, chega-se à conclusão que em Goiás os tempos eram outros e que houve uma verdadeira ruptura na vida política do Estado, na esteira do advento da “Nova República”.
Todavia, ao cotejar as informações constantes no relatório, de 1930-1933, com os reais acontecimentos, percebe-se uma nítida manipulação de dados e uma incontestável deturpação da história.
Inicialmente, o relatório pretende demonstrar as transformações implementadas no campo da educação. Foi destacado que, diferentemente do que se observava nos governos anteriores, o decreto nº 1.656, de 1931, instituía um critério meritório para nomear as “melhores alunas” das escolas normais do Estado no cargo de “professor primário”. Ocorre, contudo, que o número de normalistas nomeadas em 1931 correspondeu a apenas um terço das professoras nomeadas naquele período. Afinal, qual foi o critério adotado para os dois terços restantes?
Ademais, por qual razão o critério meritório seria utilizado para apenas um setor da administração? E, para os demais cargos da administração estadual, quais seriam os critérios utilizados? O relatório queda-se silente a tal respeito. Resta claro, assim, que as práticas clientelistas de cabide de empregos, de nomeações de parentes, protegidos e correligionários continuavam.
Conforme o relatório, entre os anos de 1930 e 1933, o ensino primário teria sofrido uma significativa expansão, sendo criados oito novos grupos escolares. Entretanto, ao se analisar os dados oficiais, constata-se que o número de grupos criados entre 1930 e 1933 foi inferior ao apresentado no relatório. Enquanto foram criados nove grupos entre 1927 e 1929 e nos anos de 1930 a 1931 instituiu-se apenas seis grupos escolares (Campo Formoso, Ipameri, Cristalina, Pirenópolis, Vianópolis e Santana).
Outra inverdade relativa ao sistema educacional reproduzida no relatório refere-se ao número de alunos que estavam recebendo educação regular. Consoante o documento, no ano de 1933, estariam frequentando o ensino primário 31.327 alunos. Noutra via, conforme “relatório apresentado ao Dr. Getúlio Vargas” de 1939, no ano de 1933, 22.946 alunos estavam matriculados no ensino primário e, destes, 15.750 frequentavam a escola. Ora, ainda que as informações contidas no relatório de 1933 estivessem sujeitas à confirmação, não se mostra plausível que o relatório de 1939 tenha subestimado os dados de 1933. Logo, evidencia-se que, na verdade, o governo revolucionário tenha superestimado os dados de 1933.
Em outro ponto do relatório, o governo revolucionário, ao criticar o comportamento administrativa das antigas oligarquias, que só se preocuparam com a capital do Estado, enfatizou a importância de implementar melhorias e fomentar o desenvolvimento da região norte de Goiás. Contudo, na realidade, vislumbrou-se que a preocupação com o norte goiano ficou apenas no plano do discurso, não sendo apresentada nenhuma medida concreta de ajuda àquela região. Pedro Ludovico limitou-se a conclamar o apoio do governo federal no sentido de viabilizar a navegação fluvial com alternativa para a comunicação comercial entre os Estados de Goiás, Pará, Mato Grosso e Maranhão.
No campo do serviço sanitário — uma das bandeiras a serem levantadas por Pedro Ludovico para justificar a mudança da capital —, o governo, ao reconhecer no relatório a limitação nos serviços de higienização pública, colocou a questão nas mãos do governo federal: “O problema da saúde pública é tipicamente nacional. Só o governo federal já pelos seus recursos materiais, já pelo seu prestígio poderia resolvê-lo”.
Adiante, em mensagem encaminhada à Assembleia Legislativa no ano de 1936, reconhece Pedro Ludovico que “efetivamente a atuação da Diretoria Geral do Serviço Sanitário no campo da higiene e profilaxia só se fez sentir na sede do governo”.
O famigerado relatório de 1933 dedica um capítulo inteiro à análise do contrato de fornecimento de força e luz firmado entre o Estado de Goiás e a empresa Guedes & Ratto & Cia, em 1920. Segundo o documento, “os serviços de iluminação pública e particular desta capital [Cidade de Goiás] representa índice mais flagrante do protecionismo que campeou às soltas, estimulando pela politicagem no regime em boa hora deposto (...) o que nos parece iníquo, portanto condenável, porque não é sequer compreensível, que os 56 municípios componentes do Estado, a maioria dos quais ainda não pode nem poderá tão cedo instalar usinas de eletricidade nas respectivas sedes, que vivem às escuras, sejam forçadas por 30 anos, a concorrer para o custeio de um caríssimo e medíocre serviço social, que só aproveita a população da cidade de Goiás”.
A despeito da aparente crítica e aversão aos termos do referido contrato, o governo revolucionário, na oportunidade de reformulação contratual por meio do decreto nº 4.105, de 9 de dezembro de 1933, não revogou a maior parte das cláusulas caracterizadoras do favoritismo. Praticamente, o contrato não sofreu nenhuma alteração substancial, permanecendo todos os pontos de favoritismo então existentes no contrato de 1920, inclusive no tocante a concessão de privilégio do serviço por 30 anos e a isenção de impostos.
Tal incongruência entre a propaganda oficial e a prática é precisamente identificada pela história do espanhol Luis Palacín que, denominando os governos de verdadeiros mestres da ficção científica, pontua: “Ao passarmos o ‘antes’ para o ‘agora’, isto é, ao passarmos da denúncia dos males passados à exposição das realizações da Revolução após três anos no governo, invade-nos e acompanha-nos durante toda a leitura uma sensação desassossegante: a de existir uma enorme desproporção entre a magnitude dos agravos e o diminuto de realizações”.
Ante a observação feita por Luis Palacín, a professora Ana Lúcia da Silva pondera: “Diante do mesmo quadro desenhado no relatório, diante da discrepância entre as promessas e as realizações, entre o discurso e a prática, nós, ao contrário de Palacín, não achamos que os governos sejam os verdadeiros mestres da ficção científica. Eles não trabalham com ficção. Eles trabalham com a realidade, falsificando-a. Nós achamos que os governos são os verdadeiros mestres da falsificação da realidade e, se os homens e suas relações aparecem invertidos como em uma câmara escura, é porque a ideologia cumpriu o seu papel”.
Observada a existência de flagrante dissonância entre o discurso oficial — com o fito de imprimir uma ideia de verdadeira revolução — e o mundo dos fatos, constata-se que as práticas de dominação política foram alguns dos únicos aspectos que se transformaram com a Revolução de 1930, restando a melhoria nas condições da população e a evolução das práticas democráticas suspensas na linha do tempo, entre o “antes” e o “depois”.
Victor Amorim é advogado e professor de Direito Constitucional.
Fonte: Jornal Opção