Norte-Sul: A ferrovia que nunca termina

O pessoal da produção e do trabalho que depende da obra e até já adiantou fortunas para vê-la em funcionamento é quem mais tem a perder com a paralisação. O caso mais grave é o da mineradora Vale, empresa global com sede no Brasil, que emprega 100 000 pessoas. A Vale pagou antecipadamente 1,1 bilhão de reais ao governo pelo direito de explorar comercialmente um trecho da ferrovia por trinta anos. Os engenheiros da companhia examinaram o que foi feito até agora e constataram que a obra se divide em dois trechos distintos: o que está por fazer e o que já foi feito mas enferruja por falta de uso e manutenção. O relatório produzido pela auditoria da Vale, a que VEJA teve acesso, mostra que os engenheiros da empresa encontraram preocupantes falhas de projeto nos trechos já construídos. Nos trilhos próximos a Palmas, capital do Tocantins, foram descobertas imperfeições de alinhamento suficientes para fazer descarrilar um trem de carga que passasse sobre eles em alta velocidade. Em diversos trechos dados como terminados foram encontrados trilhos trincados, desparafusados ou soldados de forma tão tosca que denotavam, segundo o relatório, uma "total negligência".
Uma pessoa mais crédula poderia pensar que o destino da Norte-Sul é nunca se transformar mesmo em uma ferrovia. Ela deveria ficar para sempre como um monumento à "total negligência" do estado quando gasta o dinheiro do povo, o que já enterrou bilhões em riquezas dos brasileiros em diversas moedas – cruzeiros, cruzados e reais. Em julho de 1988, VEJA publicou uma reportagem com uma chamada de capa que refletia bem o estado de espírito do país com a Norte-Sul: "Orçamento/A volta da ferrovia maldita". A matéria contava que o governo Sarney fizera cortes nos gastos com saúde, educação e outros de impacto social, mas preservara o orçamento para a obra que ligaria Brasília ao Maranhão. A reportagem de VEJA descrevia a obra como "desastrosa do ponto de vista ético (...) incompreensível do ponto de vista técnico e amaldiçoada do ponto de vista político." Duas décadas depois, o diagnóstico da revista permanece correto.
Como sempre faz quando algo em seu governo dá errado, o presidente Lula pôs a culpa do descalabro nos outros. No caso, no TCU. "O problema é que o TCU achou que tinha algo errado e paralisou as obras. A obra parada vai custar muito mais caro para o Brasil", disse Lula, na semana passada. Errado. O TCU não paralisou as obras. As empreiteiras é que o fizeram. Quem deve cobrar as empreiteiras são os burocratas de um órgão do governo que tem nome de remédio, Valec. Quem manda na Valec é um certo "Ula", apelido do diretor de engenharia da estatal, Ulisses Assad, que ficou famoso nas gravações telefônicas interceptadas pela polícia na Operação Boi Barrica, aquela que trouxe à luz o esquema de desvio de dinheiro público organizado por Fernando Sarney, filho do senador José Sarney. Ula é amigão de Fernando Sarney e, segundo a PF, integrante da mesma "organização criminosa". Nos diálogos, há menção de pagamentos de propina ao engenheiro, assim como evidências de que ele ignorava os rolos das empreiteiras na construção da Norte-Sul. Sobre a ferrovia, explica: "São problemas pequenos e normais de uma obra". O governo acreditou. Afinal, Ula tem como patrono o "incomum" senador José Sarney. No fim do ano passado, o conselho de administração da Valec pediu a cabeça de Ula ao ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento. Percebendo que as coisas estavam prestes a sair dos trilhos, Sarney puxou o apito, barrando a demissão do afilhado. E a culpa é do TCU...
Fonte: Revista Veja

