“Justiceiros” Casos ainda sem investigação
Polícia Civil diz que crimes com lesão corporal leve dependem de representação das vítimas
Depois de pelo menos 11 casos de ação de “justiceiros” em Goiás, parte documentada em vídeos publicados na internet, pouco se sabe sobre os autores das agressões a suspeitos de crimes que vão de furto a estupro. São chutes, socos, por vezes pauladas e pedradas, mas que na maioria das vezes provocam lesões corporais leves. A investigação deste tipo de ocorrência depende de representação à polícia por parte de quem apanhou. A Polícia Civil de Goiás (PC) informa que nenhum dos agredidos no município de Goiânia procurou as delegacias para cobrar a punição de seus agressores.
O fato de a população se juntar para fazer justiça com as próprias mãos não é novidade, mas se intensificou depois que um adolescente foi espancado e amarrado a um poste na zona sul do Rio de Janeiro (RJ), em 31 de janeiro deste ano. A partir daí, relatos de casos semelhantes se espalharam pelo País. O primeiro registro em Goiás aconteceu 17 dias depois, no Setor Alto da Glória. No dia seguinte, mais dois casos, em regiões distintas; pouco antes de a Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Goiás (OAB-GO) divulgar que cobraria investigação.
LINCHAMENTO
A escalada da violência culminou no linchamento, na noite de sábado, de um homem suspeito de cometer estupros em Nova Crixás. Isaias dos Santos Novaes, de 24 anos, passou pelo reconhecimento de uma das vítimas do abuso sexual, que havia acontecido naquele mesmo dia. A criança de 6 anos o olhou e disse que não foi ele, que só permaneceu preso porque confessou um furto a residência.
Ao checar a ficha do preso, o delegado de Mozarlândia, Arthur Curado Fleury, que estava no plantão, viu que ele era investigado por outros casos. O delegado titular de Nova Crixás, Murilo Gonçalves de Almeida, afirma que, em abril de 2013, houve um caso de abuso sexual. A polícia identificou três suspeitos - a vítima de linchamento não estava entre eles. Há cerca de um mês, houve uma tentativa de estupro. Desta vez, Isaias foi apontado como suspeito pela vítima, também uma criança. “Ela reconheceu mais ou menos de foto.” O pai da criança, que chegou a lutar com o invasor, não viu o rosto.
SUSPEITO
O caso de um mês atrás colocou Isaias entre os suspeitos pelo primeiro estupro. A notícia correu a cidade e criou na população a convicção de autoria. Apesar disso, afirma Almeida, ele negava os estupros e tinha concordado em fazer exame de DNA para provar inocência. Sem elementos para mantê-lo preso, o delegado o liberou. No último sábado houve registro de pelo menos dois crimes em Nova Crixás, cidade de 12.488 habitantes, localizada a 378 quilômetros de Goiânia. Um furto e um estupro. O caso de abuso seguia o mesmo modus operandi dos dois anteriores: o agressor entrou na casa enquanto estava escuro, sequestrou a criança, estuprou e levou de volta.
A mesma maneira de atuar, e diante do reconhecimento, ainda que duvidoso, feito pela criança que quase foi vítima um mês atrás, levou a população a concluir que o autor seria Isaias. Era ele também o suspeito pelo furto. A perseguição durou o dia todo. Ele foi preso por volta das 17 horas e levado para a delegacia, onde começou a se aglomerar gente. A vítima do sábado foi levada até lá, o olhou pelo espelho da sala de reconhecimento, e disse que não era ele o autor do estupro. Isaias continuou preso pelo furto, que confessou ser autor.
“Já tinha 20 a 30 pessoas na porta da delegacia, mas quando ele chegou ao hospital, para fazer exames, juntou uma multidão em 20 minutos. Nunca vi isso na minha vida”, conta Fleury. Centenas de pessoas cercaram a unidade de saúde. Bloquearam ruas com carros. O hospital foi invadido por duas vezes. “Umas 200 pessoas entraram, mas do lado de fora tinha muito mais”, afirma Gonçalves, que preside o inquérito e começou a tomar depoimentos ontem (leia reportagem nesta página). Na primeira vez, atingiram Isaias, ainda algemado, na cabeça. Na segunda, o golpearam com paus, pedras e faca. A sessão de agressões que provocou a morte durou dois minutos.
Polícia argumenta falta de representação pela vítima
A polícia argumenta que há casos de justiçamento não investigados porque os suspeitos não prestam queixa. A Ordem dos Advogados do Brasil em Goiás (OAB-GO) já cobrou respostas à Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP). A presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-GO, Mônica Araújo de Moura, lembra que alguns casos precisam da representação da vítima, que, às vezes, também é suspeita de praticar crimes.
O advogado Jorge Paulo Carneiro, da Comissão de Segurança Pública e Política Criminal da OAB-GO, observa que, com a falta de representação por parte da vítima, o Estado fica legalmente impedido de fazer a investigação e se limita a realizar este trabalho apenas em casos de lesão corporal grave ou tentativa de homicídio. “Temos cobrado respostas das autoridades sobre estes casos. É preciso que haja investigação dos autores e, também, o combate aos outros crimes”, diz ele. “A ação de ‘justiceiros’ só acontece porque o Estado não cumpre o seu papel de investigar e punir os demais autores de crimes, gerando uma sensação de insegurança”, emenda.
Vídeo pode ajudar a identificar agressores
O delegado titular de Nova Crixás, Murilo Gonçalves de Almeida, assumiu ontem a presidência dos inquéritos para apurar o estupro de uma criança de 6 anos e o linchamento de um homem apontado como suspeito, Isaias dos Santos Novaes. Foram ouvidos ontem três dos oito policiais militares que faziam a guarda do preso quando ele foi arrebatado pela multidão e assassinado a golpes de pau, pedra e faca. Funcionários do hospital municipal, onde ocorreu o crime, também foram ouvidos.
Almeida aguarda a perícia liberar as imagens das câmeras de gravação da unidade de saúde. O local do assassinato - a cozinha do hospital - não tem câmera, mas o corredor de acesso tem. É com essas cenas que o delegado espera identificar os agressores. “Costuma demorar, mas nesse caso vamos cobrar para ver se vem mais rápido”, diz. Enquanto o HD onde a gravação está em análise em Goiânia, o policial e sua equipe analisam as imagens feitas com celular. “Temos quatro vídeos”, entre os que foram publicados na internet e de testemunhas.
Um dos vídeos vistos pelo delegado mostra a multidão batendo em Isaias mesmo depois de morto, quando já havia sido arrastado para o meio da rua. Almeida também teve acesso a uma gravação do primeiro ataque. “Mas não dá para ver muita coisa porque queimou a luz da sala”, diz. A multidão quebrou a iluminação enquanto avançava sobre o suspeito de estupro. Entre a primeira e a segunda agressão, houve uma queda de luz. Ainda não se sabe quem desligou a energia.
“Quando apagou a luz, as pessoas pularam o muro. Quando a energia voltou já estava bem difícil de controlar”, conta o delegado, depois de conversar com os PMs. Um deles deu um tiro para o alto, mas não foi suficiente para afastar a população. Em um dos vídeos divulgados na internet é possível perceber a excitação popular. Urros e gritos de incentivo aos agressores permeiam a gravação.
O delegado pretende ouvir as testemunhas e fazer a identificação das pessoas filmadas. “Não sei se vai ser possível fazer assim ou se vamos ouvindo na medida que for sendo identificado”, diz. Segundo ele, não há prazo específico para conclusão do inquérito.
Reflexo da falta de capacidade do Estado
A atuação dos “justiceiros” reflete a incapacidade de o Estado em garantir e efetivar a Justiça à sociedade, na avaliação de especialistas da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Federal de Goiás (UFG) ouvidos ontem pelo POPULAR. O sociólogo Dijaci David de Oliveira observa que suspeitos pobres estão mais suscetíveis de se tornarem vítimas destes atos violentos, que, na avaliação da socióloga Dalva Borges de Souza, coordenadora do Núcleo de Estudos da Violência da Criminalidade da Universidade Federal de Goiás, representam uma regressão.
O crescimento dos índices de violência impulsionam a ação dos “justiceiros”, o que, segundo Dijaci, demonstra a fragilidade das instituições públicas. Ele critica, por exemplo, o quantitativo da Polícia militar, que tem 2,1 mil temporários contratados pelo governo por meio do Serviço de Interesse Militar Voluntário Estadual (Simve), o que corresponde a quase 15% de toda a força policial do Estado, cuja quantidade de concursados na ativa gira em torno dos 12 mil PMs.
Devido à dificuldade de identificar os “justiceiros”, Dalva considera difícil que eles recebam algum tipo de punição. “Acaba sendo uma regressão e, ao mesmo tempo, indica, mais uma vez, que a gente não se civilizou o bastante”, observa a pesquisadora, ponderando que a prática de fazer justiça com as próprias mãos, como fenômeno urbano no Brasil, teve início com a atuação de milícias no Rio de Janeiro, apesar de este não ser um problema restrito ao País.
SEGREGAÇÃO
A atuação dos “justiceiros”, na avaliação de Dijaci, também é segregadora, já que, explica ele, os ladrões ou suspeitos pobres correm mais risco de se tornarem vítimas. “Isto, na verdade, não produz Justiça. Vai produzir mais injustiça”, destaca o sociólogo. Ele acrescenta que todas as pesquisas feitas sobre linchamento constataram que muitas vítimas que morrem são inocentes. “As pesquisas têm mostrado que, ao agirem desta forma, os autores acabam cometendo crimes muitos mais bárbaros que aqueles que eles consideravam bárbaros”, ressalta.
Dalva explica, contudo, a diferença entre o que ela chama de “linchamento e de justiçamento”, que têm sido praticados ultimamente. “O linchamento é muito mais produto da irracionalidade da massa que o justiçamento, um ato deliberado, pensado e, geralmente, comandado por uma ou duas pessoas ou pela própria vítima”, acentua a pesquisadora da Faculdade de Ciências Sociais. “Na medida em que isso é repercutido na mídia, algumas pessoas se sentem mais à vontade para praticar, acham que podem repetir o feito e isso pode fazer com que os casos se repitam”, alerta a pesquisadora.
Fonte: Jornal O Popular