Como a saúde de Goiás vai parar na capital
A falha no sistema brasileiro faz com que as capitais sejam responsáveis por praticamente todos os atendimentos dos Estados
Marcos Nunes Carreiro
Dados da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) dão conta de que Goiânia possui mais de 4,6 milhões de pessoas cadastradas no Sistema Único de Saúde (SUS) como moradores da capital. Contudo, o último censo do IBGE aponta que a capital de Goiás tem 1,3 milhão de habitantes. Isto é, o número de pessoas cadastradas corresponde a três Goiânias e meia, ou a 76,6% da população de todo o Estado.
Os cadastros são realizados por meio da Central de Atendimento ao Cidadão, chamada Teleconsulta. Através do 0800, o paciente pode ligar e agendar a consulta médica tanto para o atendimento básico quanto nas especialidades de clínica médica, ginecologia e obstetrícia. Entretanto, o que deveria facilitar o trabalho tanto de agentes de saúde quanto da população acaba complicando o sistema, uma vez que pelo telefone fica mais difícil – para não dizer impossível – verificar a veracidade das informações apresentadas, como o endereço.
Essa complicação gera uma consequência direta para o município. Segundo o Ministério da Saúde, há uma previsão de que aproximadamente 76% da população teria acesso ao atendimento público. Nesse âmbito, cerca de 1 milhão de habitantes seriam atendidos pelo SUS em Goiânia. Porém, segundo o diretor do Departamento de Regulação, Avaliação e Controle da Secretaria Municipal de Saúde, Cláudio Tavares, os atendimentos realizados pelo município giram em torno de 1,6 milhão pacientes. Logo, seguindo as contas do Ministério, Goiânia recebe 610 mil pacientes a mais do que deveria.
Do ponto de vista do goianiense, esse quadro pode ser considerado uma aberração, visto que o inchaço do sistema esvazia a oportunidade de os moradores terem acesso a atendimento em sua própria cidade. Além disso, os dados provam também que há uma clara falsificação de cadastro nos bancos de dados do sistema municipal. É muito comum, por exemplo, que o paciente chegue do interior em busca de atendimento, trazendo em mãos o endereço de uma pessoa que reside na capital.
Isso acontece porque faz parte do senso comum que conseguir acesso a atendimentos básicos na capital com logradouro do interior é mais complicado. Por isso, quando precisa de consulta médica, ou exames, o paciente faz contato com um amigo ou parente em Goiânia, pega um comprovante de endereço e se dirige a uma unidade de saúde, seja ela um Centro Integrado de Assistência Médico Sanitária (Ciams), um Centro de Apoio Integral à Saúde (Cais) ou mesmo um hospital especializado, como o Hospital das Clínicas (HC), a Santa Casa de Misericórdia etc.
Estatísticas voltadas apenas para os cartões do SUS, apontam que Goiânia ultrapassa em mais de 1 milhão o número previsto de unidades. Na capital são mais de 1,8 milhão de cartões na base de dados do Sistema Único. Pela conta da secretaria, o número de cartões de goianienses fica entre 700 mil e 800 mil, sendo que o restante é de não goianienses. Mas o que fazer? O sistema é universal e a prefeitura não pode adotar uma política de barreira, isto é, não é possível deixar de atender moradores de fora.
Além disso, a gestão é impedida de não prestar auxílio, visto que, se não socorrer os pacientes, a Prefeitura pode receber sanções penais. Dessa forma, a gestão se torna única responsável pelo inchaço do quadro e pelas falhas do sistema, mesmo sem ser.
Fraudes no sistema geram perda para a saúde municipal
A compensação citada por Machado diz respeito à pactuação entre as três esferas do Executivo (municípios, Estados e União), que reza a cartilha prevendo a complicada situação das capitais e a histórica falta de dinheiro dos municípios. Segundo a pactuação, ao atender outros pacientes que não os seus, as grandes cidades devem receber a verba referente a eles. Dessa forma, os recursos enviados pelo governo federal, ao invés de serem enviados a todos os municípios, são repassados às capitais, desde que firmada a pactuação municipal.
Contudo, como há fraudes, fica complicado para que os secretários de saúde repassem a verba referente a todos os atendimentos realizados efetivamente. É o que afirma o diretor do Departamento de Regulação, Avaliação e Controle da Secretaria Municipal de Saúde, Cláudio Tavares. “Todo mês recebemos verbas dos municípios pactuados. O problema é que o repasse é feito para abater aquilo que foi identificado. Mas como não conseguimos controlar a entrada de pacientes que falsificam o cadastro, não há como cobrar. Fora isso, não conseguimos comprovar o gasto de verba que recebemos do Ministério da Saúde, pois faltam recursos. E a cada seis meses, sem como mensurar os gastos, ficamos impedidos de pedir mais recursos”, diz.
Por exemplo, um município ‘A’ firma pactuação com Goiânia no número de 20 consultas especializadas por mês. Esses 20 pacientes serão regulados. Contudo, se algum paciente dessa cidade vir à capital com endereço adulterado e fizer a consulta, esse número irá se exceder o previsto, porém a secretaria não conseguirá abater a verba da prefeitura do referido município, porque não há como provar o fato.
Apenas em 2012, segundo o Ministério Público de Goiás (MP-GO), houve municípios que enviaram 8 mil atendimentos para a capital, tendo uma pactuação de 300. Isso gera um grave problema de recursos, tanto é que a capital investe mais do que o previsto em lei. O Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 29 determina que os municípios devem colocar no mínimo 15% de seu tesouro na saúde. Goiânia, no fechamento do ano passado, colocou praticamente 23% e a previsão para este ano é de aplicar pelo menos 25%.
Para Tavares, embora o problema não seja a regulação em si, ela provoca uma grande parte dele. “A própria regulação acaba pressionando as prefeituras do interior a orientar seus pacientes a vir por conta própria e se passar por moradores de Goiânia. Isso acontece quando a capital diz às prefeituras que elas estouraram a cota prevista. Por outro lado, se não houver regulação, vira bagunça. Então, esse é um assunto que deve ser ajustado todos os dias”, relata.
O diretor aponta, porém, que a situação vivida com os pacientes de outras cidades pode ser resolvida com maior facilidade, pois é mais fácil ter contato com as prefeituras de interior. “O grande problema são os pacientes que vêm de Mato Grosso, do Pará e da Bahia para fazer tratamento de alta complexidade, como oncologia e cardiologia. Às vezes, um procedimento desses chega a custar R$ 20 mil. Só em quimioterapia, nós extrapolamos os recursos que recebemos do Ministério da Saúde em R$ 1 milhão por mês”, afirma Tavares.
A sobrecarga na saúde de Goiânia acarreta o mau atendimento vivenciado atualmente. Os habitantes vêm do interior e, quando agem corretamente, passam pela regulação. Porém, nem sempre há vagas e o ideal é que essa pactuação seja refeita. Mas antes disso é preciso reestruturar as unidades do interior e criar hospitais com capacidade para atender, pelo menos, casos de média complexidade. Em tese, essa é a solução do problema, pois apenas os casos de alta complexidade serão enviados para Goiânia.
“Cidade pequena não tem recursos”
Segundo o promotor, a vinda de pacientes de outros Estados em Goiânia não é novidade, pois a cidade é referência em alguns procedimentos, como oftalmologia e oncologia. A Fundação Banco de Olhos, por exemplo, atrai pessoas de vários lugares, assim como o Hospital Araújo Jorge, uma das principais referências em tratamento de câncer do Brasil. Há também o Centro de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo (Crer), importante instituição ortopédica.
“E nenhum hospital pode negar atendimento de urgência e emergência. Se o Estado da Bahia inteiro vir se tratar em Goiânia, todos devem ser atendidos. Por exemplo, se Porangatu tiver um problema grave de saúde e começar a enviar seus pacientes para cá, não podemos mandá-los de volta para Uruaçu, só porque é uma cidade mais próxima para atendimento. Se o paciente morre, ou sofre algum dano, a responsabilidade é do gestor da capital”, afirma Pina.
Para o promotor, que está na coordenação do CAO há apenas alguns meses, o que deve ser fortalecido é a regionalização do atendimento especializado pelo Estado. “O Ministério Público está tratando dessa questão da regionalização dos atendimentos. Estamos aqui todos os dias para tentar resolver esse problema, mas não há solução em curto prazo.”
“O paciente já vem orientado para colocar o endereço de outrem”
No Ciams do Setor Pedro Ludovico, um dos mais procurados, tanto por pacientes de Goiânia quanto de outras cidades, a reportagem se deparou com alguns casos. Com pouco tempo de espera, por volta das 9 horas da manhã, uma paciente começou a se irritar com a espera por atendimento. A senhora, que não quis se identificar, estava sentada e de repente começou a reclamar da demora.
Logo a paciente se levantou e foi ao balcão cobrar uma ação por parte das funcionárias. Segue o diálogo:
– Me disseram que o atendimento era às 8 horas!
– Minha senhora, já dissemos que o médico só começará a atender às 10 horas.
– Não é possível! Eu vim de Inhumas para ser atendida e sou obrigada a esperar tanto.
– Mas a senhora está com endereço de Goiânia, não?
– Sim. Eu era de Inhumas, mas agora eu moro aqui.
A diretora técnica do Ciams, Valéria Nunes Pereira, diz que casos assim não são raros na unidade, pois as consultas não encaminhadas são marcadas pelo Teleconsulta, que não distingue quem é da capital ou do interior. “E no guichê é impossível verificar endereço por endereço de todos os pacientes. Porém, não podemos negar atendimento, pois o sistema é universal”, declara ela.
Em alguns minutos de conversa, a diretora contou meia dúzia de casos emblemáticos envolvendo pacientes do interior. O primeiro deles aconteceu durante a campanha de prevenção contra a influenza A, em abril deste ano. “Os pacientes com prioridade eram os que possuíam comorbidade, como os casos de diabetes. E ao longo do tratamento, percebemos que quase 1 milhão de pessoas havia sido atendida. Isto é, ou mais de 80% da população de Goiânia tinha comorbidade e estava recebendo os medicamentos, ou tinha alguma coisa errada.”
A segunda história dá conta do famoso termo “ambulancioterapia”, palavra usada para definir as políticas empregadas por muitos prefeitos do Brasil: comprar ambulâncias para levar os pacientes aos grandes centros urbanos ao invés de investir na construção de unidades de saúde. Valéria fala: “Dias atrás chegou um micro-ônibus de Pires do Rio. Parou aqui na porta e deixou os pacientes. À primeira vista, sabíamos que todos eles eram dessa cidade, mas quando entraram e apresentaram os endereços eram todos de Goiânia. O que podemos fazer? Não podemos negar atendimento.”
No último exemplo, percebe-se a presença de pessoas de outros Estados realizando tratamento na capital goiana. “Há pouco tempo recebemos uma senhora com tuberculose. O endereço dela é da Região Noroeste de Goiânia, mas depois descobriu-se que ela é, na verdade, do interior da Bahia.”
Quase em frente a esta, fica a casa de apoio da prefeitura de Vicentinópolis. A reportagem tocou o interfone e entrou. A secretária da Casa, entretanto, um tanto receosa disse apenas que não poderia dar nenhuma informação sobre o andamento da instituição, mas relatou que, embora o fluxo de pacientes seja maior por dia, a casa conta com 40 vagas.
A última unidade – e também a maior – corresponde à da prefeitura de Catalão, a quinta maior economia de Goiás. A casa possui 150 vagas para os pacientes que precisam de hospedagem. Porém, o fluxo de pessoas que passam pela instituição é muito maior. A prefeitura de Catalão disponibiliza sete micro-ônibus e oito ambulâncias para levar e trazer pacientes a Goiânia todos os dias.
Contudo, a diretora da casa, Andreia Machado de Oliveira explica que mais de 80% dos pacientes presentes no local vêm para a capital em busca de tratamento especializado, principalmente câncer. “Todos os nossos pacientes vêm regulados pela pactuação firmada entre as prefeituras de Catalão e Goiânia.”
Segundo ela, não há casos registrados de pessoas utilizando o endereço da casa para conseguir consulta ou exames na rede municipal de saúde. “O que acontece, às vezes, é de o paciente passar mal aqui dentro da casa e nós chamarmos o Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência] para levá-lo à emergência. Porém, como eles não costumam a atender aos chamados de casas de apoio, oriento para que não informem que é daqui, pois se falar que é da casa eles não vêm. Não podemos deixar o paciente morrer”, diz.
Quando se analisa o contexto da saúde no País inteiro, percebe-se que todas as capitais passam por dificuldades. Motivo? Cada uma atrai a população de todo o Estado. Os municípios do interior, muitas vezes sem recursos próprios para manter o sistema, enviam pacientes a todo momento para as grandes cidades. Em princípio, os procedimentos acobertam, principalmente, casos de alta e média complexidade, como tratamento de câncer e cardiologia. Porém, o que se vê, na realidade, são pacientes oriundos de cidades médias do interior indo para as capitais realizar consultas básicas, em clínica geral.
Essa situação faz com que a qualidade da saúde das capitais seja ruim, pois os atendimentos que deveriam ser voltados para os moradores da cidade devem ser distribuídos para os demais municípios e, muitas vezes, até com outros Estados. Estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que a influência de Goiânia na rede urbana, por exemplo, abrange os Estados de Goiás e do Tocantins, tendo ainda alguma penetração no Pará, Maranhão, Piauí e Mato Grosso. Ou seja, é bastante provável que, além de receber pacientes de outros municípios, a capital goiana também acolha pessoas de outros Estados da Federação.
Dados da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) dão conta de que Goiânia possui mais de 4,6 milhões de pessoas cadastradas no Sistema Único de Saúde (SUS) como moradores da capital. Contudo, o último censo do IBGE aponta que a capital de Goiás tem 1,3 milhão de habitantes. Isto é, o número de pessoas cadastradas corresponde a três Goiânias e meia, ou a 76,6% da população de todo o Estado.
Os cadastros são realizados por meio da Central de Atendimento ao Cidadão, chamada Teleconsulta. Através do 0800, o paciente pode ligar e agendar a consulta médica tanto para o atendimento básico quanto nas especialidades de clínica médica, ginecologia e obstetrícia. Entretanto, o que deveria facilitar o trabalho tanto de agentes de saúde quanto da população acaba complicando o sistema, uma vez que pelo telefone fica mais difícil – para não dizer impossível – verificar a veracidade das informações apresentadas, como o endereço.
Essa complicação gera uma consequência direta para o município. Segundo o Ministério da Saúde, há uma previsão de que aproximadamente 76% da população teria acesso ao atendimento público. Nesse âmbito, cerca de 1 milhão de habitantes seriam atendidos pelo SUS em Goiânia. Porém, segundo o diretor do Departamento de Regulação, Avaliação e Controle da Secretaria Municipal de Saúde, Cláudio Tavares, os atendimentos realizados pelo município giram em torno de 1,6 milhão pacientes. Logo, seguindo as contas do Ministério, Goiânia recebe 610 mil pacientes a mais do que deveria.
Do ponto de vista do goianiense, esse quadro pode ser considerado uma aberração, visto que o inchaço do sistema esvazia a oportunidade de os moradores terem acesso a atendimento em sua própria cidade. Além disso, os dados provam também que há uma clara falsificação de cadastro nos bancos de dados do sistema municipal. É muito comum, por exemplo, que o paciente chegue do interior em busca de atendimento, trazendo em mãos o endereço de uma pessoa que reside na capital.
Isso acontece porque faz parte do senso comum que conseguir acesso a atendimentos básicos na capital com logradouro do interior é mais complicado. Por isso, quando precisa de consulta médica, ou exames, o paciente faz contato com um amigo ou parente em Goiânia, pega um comprovante de endereço e se dirige a uma unidade de saúde, seja ela um Centro Integrado de Assistência Médico Sanitária (Ciams), um Centro de Apoio Integral à Saúde (Cais) ou mesmo um hospital especializado, como o Hospital das Clínicas (HC), a Santa Casa de Misericórdia etc.
Estatísticas voltadas apenas para os cartões do SUS, apontam que Goiânia ultrapassa em mais de 1 milhão o número previsto de unidades. Na capital são mais de 1,8 milhão de cartões na base de dados do Sistema Único. Pela conta da secretaria, o número de cartões de goianienses fica entre 700 mil e 800 mil, sendo que o restante é de não goianienses. Mas o que fazer? O sistema é universal e a prefeitura não pode adotar uma política de barreira, isto é, não é possível deixar de atender moradores de fora.
Além disso, a gestão é impedida de não prestar auxílio, visto que, se não socorrer os pacientes, a Prefeitura pode receber sanções penais. Dessa forma, a gestão se torna única responsável pelo inchaço do quadro e pelas falhas do sistema, mesmo sem ser.
Fraudes no sistema geram perda para a saúde municipal
As aglomerações em cidades são, em grande parte, decorrência do movimento natural do ser humano em se concentrar nos centros mais populosos, pois eles condensam os serviços de entretenimento, as facilidades, as melhores rendas etc. Entretanto, um fator chama atenção: capitais ou não, todos os municípios estão exauridos financeiramente. A fala é do secretário de Saúde de Goiânia, Fernando Machado.
Para ele, em Goiás, nenhum secretário vai dizer que a saúde vai bem, pois grande parte das cidades gasta mais do que o patamar de 15% estabelecido por lei, enquanto os Estados não gastam mais do que 12%, pois travam sua receita. Nesse contexto, a União gasta menos ainda. Assim, a divisão fica injusta. “Ano passado fechamos o ano com R$ 20 milhões em atendimentos extras, isto é, com pacientes de outros municípios, mas não recebemos compensação financeira relativa a essas pessoas”, aponta Fernando Machado.
A compensação citada por Machado diz respeito à pactuação entre as três esferas do Executivo (municípios, Estados e União), que reza a cartilha prevendo a complicada situação das capitais e a histórica falta de dinheiro dos municípios. Segundo a pactuação, ao atender outros pacientes que não os seus, as grandes cidades devem receber a verba referente a eles. Dessa forma, os recursos enviados pelo governo federal, ao invés de serem enviados a todos os municípios, são repassados às capitais, desde que firmada a pactuação municipal.
Contudo, como há fraudes, fica complicado para que os secretários de saúde repassem a verba referente a todos os atendimentos realizados efetivamente. É o que afirma o diretor do Departamento de Regulação, Avaliação e Controle da Secretaria Municipal de Saúde, Cláudio Tavares. “Todo mês recebemos verbas dos municípios pactuados. O problema é que o repasse é feito para abater aquilo que foi identificado. Mas como não conseguimos controlar a entrada de pacientes que falsificam o cadastro, não há como cobrar. Fora isso, não conseguimos comprovar o gasto de verba que recebemos do Ministério da Saúde, pois faltam recursos. E a cada seis meses, sem como mensurar os gastos, ficamos impedidos de pedir mais recursos”, diz.
Por exemplo, um município ‘A’ firma pactuação com Goiânia no número de 20 consultas especializadas por mês. Esses 20 pacientes serão regulados. Contudo, se algum paciente dessa cidade vir à capital com endereço adulterado e fizer a consulta, esse número irá se exceder o previsto, porém a secretaria não conseguirá abater a verba da prefeitura do referido município, porque não há como provar o fato.
Apenas em 2012, segundo o Ministério Público de Goiás (MP-GO), houve municípios que enviaram 8 mil atendimentos para a capital, tendo uma pactuação de 300. Isso gera um grave problema de recursos, tanto é que a capital investe mais do que o previsto em lei. O Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 29 determina que os municípios devem colocar no mínimo 15% de seu tesouro na saúde. Goiânia, no fechamento do ano passado, colocou praticamente 23% e a previsão para este ano é de aplicar pelo menos 25%.
Para Tavares, embora o problema não seja a regulação em si, ela provoca uma grande parte dele. “A própria regulação acaba pressionando as prefeituras do interior a orientar seus pacientes a vir por conta própria e se passar por moradores de Goiânia. Isso acontece quando a capital diz às prefeituras que elas estouraram a cota prevista. Por outro lado, se não houver regulação, vira bagunça. Então, esse é um assunto que deve ser ajustado todos os dias”, relata.
O diretor aponta, porém, que a situação vivida com os pacientes de outras cidades pode ser resolvida com maior facilidade, pois é mais fácil ter contato com as prefeituras de interior. “O grande problema são os pacientes que vêm de Mato Grosso, do Pará e da Bahia para fazer tratamento de alta complexidade, como oncologia e cardiologia. Às vezes, um procedimento desses chega a custar R$ 20 mil. Só em quimioterapia, nós extrapolamos os recursos que recebemos do Ministério da Saúde em R$ 1 milhão por mês”, afirma Tavares.
A sobrecarga na saúde de Goiânia acarreta o mau atendimento vivenciado atualmente. Os habitantes vêm do interior e, quando agem corretamente, passam pela regulação. Porém, nem sempre há vagas e o ideal é que essa pactuação seja refeita. Mas antes disso é preciso reestruturar as unidades do interior e criar hospitais com capacidade para atender, pelo menos, casos de média complexidade. Em tese, essa é a solução do problema, pois apenas os casos de alta complexidade serão enviados para Goiânia.
O Ministério Público de Goiás (MP-GO) tem uma ação no sentido de investigar o inchaço na saúde de Goiânia. Porém, todos admitem um incômodo fato: as prefeituras, sobretudo as menores, não têm condições de arcar com os gastos na saúde. Está claro que as consultas básicas — que são clínica geral, pediatria e ginecologia — devem ser atendidas pelas prefeituras por meio dos hospitais municipais, assim como exames mais simples, por exemplo, os que medem as taxas de glicemia. Já procedimentos de média e alta complexidade, como tomografias, ecocardiografias e ultrassonografias, realmente devem ser realizados em Goiânia. Os municípios, principalmente os pequenos, não conseguem atender esse tipo de procedimento.
O promotor Érico de Pina, que coordena o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa da Saúde (CAO Saúde), diz que, muitas vezes, as cidades de interior não dispensam sequer a atenção básica e não conseguem tratar nem os casos de hipertensão e diabetes. Dessa forma, essas pessoas são mandadas para a capital por várias questões, seja falta de estrutura, de recurso, de informação, de interesse etc. “Assim, um exame de raios-X que poderia ser feito em uma cidade média do interior é enviado para Goiânia”, declara.
Segundo o promotor, a vinda de pacientes de outros Estados em Goiânia não é novidade, pois a cidade é referência em alguns procedimentos, como oftalmologia e oncologia. A Fundação Banco de Olhos, por exemplo, atrai pessoas de vários lugares, assim como o Hospital Araújo Jorge, uma das principais referências em tratamento de câncer do Brasil. Há também o Centro de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo (Crer), importante instituição ortopédica.
“E nenhum hospital pode negar atendimento de urgência e emergência. Se o Estado da Bahia inteiro vir se tratar em Goiânia, todos devem ser atendidos. Por exemplo, se Porangatu tiver um problema grave de saúde e começar a enviar seus pacientes para cá, não podemos mandá-los de volta para Uruaçu, só porque é uma cidade mais próxima para atendimento. Se o paciente morre, ou sofre algum dano, a responsabilidade é do gestor da capital”, afirma Pina.
Para o promotor, que está na coordenação do CAO há apenas alguns meses, o que deve ser fortalecido é a regionalização do atendimento especializado pelo Estado. “O Ministério Público está tratando dessa questão da regionalização dos atendimentos. Estamos aqui todos os dias para tentar resolver esse problema, mas não há solução em curto prazo.”
“O paciente já vem orientado para colocar o endereço de outrem”
Durante a semana, a reportagem do Jornal Opção visitou unidades de atendimento de Goiânia, como Centros Integrados de Assistência Médico Sanitária (Ciams) e Centros de Apoio Integral à Saúde (Cais) para conversar com pacientes e diretores a fim de encontrar pessoas do interior em busca de atendimento.
No Ciams do Setor Pedro Ludovico, um dos mais procurados, tanto por pacientes de Goiânia quanto de outras cidades, a reportagem se deparou com alguns casos. Com pouco tempo de espera, por volta das 9 horas da manhã, uma paciente começou a se irritar com a espera por atendimento. A senhora, que não quis se identificar, estava sentada e de repente começou a reclamar da demora.
Logo a paciente se levantou e foi ao balcão cobrar uma ação por parte das funcionárias. Segue o diálogo:
– Me disseram que o atendimento era às 8 horas!
– Minha senhora, já dissemos que o médico só começará a atender às 10 horas.
– Não é possível! Eu vim de Inhumas para ser atendida e sou obrigada a esperar tanto.
– Mas a senhora está com endereço de Goiânia, não?
– Sim. Eu era de Inhumas, mas agora eu moro aqui.
A diretora técnica do Ciams, Valéria Nunes Pereira, diz que casos assim não são raros na unidade, pois as consultas não encaminhadas são marcadas pelo Teleconsulta, que não distingue quem é da capital ou do interior. “E no guichê é impossível verificar endereço por endereço de todos os pacientes. Porém, não podemos negar atendimento, pois o sistema é universal”, declara ela.
Em alguns minutos de conversa, a diretora contou meia dúzia de casos emblemáticos envolvendo pacientes do interior. O primeiro deles aconteceu durante a campanha de prevenção contra a influenza A, em abril deste ano. “Os pacientes com prioridade eram os que possuíam comorbidade, como os casos de diabetes. E ao longo do tratamento, percebemos que quase 1 milhão de pessoas havia sido atendida. Isto é, ou mais de 80% da população de Goiânia tinha comorbidade e estava recebendo os medicamentos, ou tinha alguma coisa errada.”
A segunda história dá conta do famoso termo “ambulancioterapia”, palavra usada para definir as políticas empregadas por muitos prefeitos do Brasil: comprar ambulâncias para levar os pacientes aos grandes centros urbanos ao invés de investir na construção de unidades de saúde. Valéria fala: “Dias atrás chegou um micro-ônibus de Pires do Rio. Parou aqui na porta e deixou os pacientes. À primeira vista, sabíamos que todos eles eram dessa cidade, mas quando entraram e apresentaram os endereços eram todos de Goiânia. O que podemos fazer? Não podemos negar atendimento.”
No último exemplo, percebe-se a presença de pessoas de outros Estados realizando tratamento na capital goiana. “Há pouco tempo recebemos uma senhora com tuberculose. O endereço dela é da Região Noroeste de Goiânia, mas depois descobriu-se que ela é, na verdade, do interior da Bahia.”
As casas de apoio
Valéria Nunes declara que na maioria das vezes o paciente já vem orientado para colocar o endereço de uma casa de Goiânia. E fato frequente é ver os pacientes apresentarem o endereço de casas de apoio como sendo o deles.
São inúmeras as casas de apoio em Goiânia. Grande parte delas é sustentada pelas demais prefeituras para dar suporte aos pacientes que vêm à capital realizar tratamento. Em apenas uma rua do Setor Sul, por exemplo, a reportagem encontrou três dessas casas. A primeira, a Casa de Apoio Olinta Guimarães, tem sua maior demanda correspondendo aos municípios de Itumbiara, Bom Jesus, Cachoeira Dourada e Castelândia.
Quase em frente a esta, fica a casa de apoio da prefeitura de Vicentinópolis. A reportagem tocou o interfone e entrou. A secretária da Casa, entretanto, um tanto receosa disse apenas que não poderia dar nenhuma informação sobre o andamento da instituição, mas relatou que, embora o fluxo de pacientes seja maior por dia, a casa conta com 40 vagas.
A última unidade – e também a maior – corresponde à da prefeitura de Catalão, a quinta maior economia de Goiás. A casa possui 150 vagas para os pacientes que precisam de hospedagem. Porém, o fluxo de pessoas que passam pela instituição é muito maior. A prefeitura de Catalão disponibiliza sete micro-ônibus e oito ambulâncias para levar e trazer pacientes a Goiânia todos os dias.
Contudo, a diretora da casa, Andreia Machado de Oliveira explica que mais de 80% dos pacientes presentes no local vêm para a capital em busca de tratamento especializado, principalmente câncer. “Todos os nossos pacientes vêm regulados pela pactuação firmada entre as prefeituras de Catalão e Goiânia.”
Segundo ela, não há casos registrados de pessoas utilizando o endereço da casa para conseguir consulta ou exames na rede municipal de saúde. “O que acontece, às vezes, é de o paciente passar mal aqui dentro da casa e nós chamarmos o Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência] para levá-lo à emergência. Porém, como eles não costumam a atender aos chamados de casas de apoio, oriento para que não informem que é daqui, pois se falar que é da casa eles não vêm. Não podemos deixar o paciente morrer”, diz.
Fonte: Jornal Opção