Urbanização: Cidade está mudando de cara
O número de empreendimentos do mercado imobiliário ajuda a dimensionar as recentes transformações na paisagem urbana de Goiânia. Foram quase 78 mil unidades habitacionais e comerciais lançadas desde 2000, mais de 13 mil prontas somente neste ano. Os números refletem a verticalização da cidade e a modificação do perfil sociocultural dos bairros mais centrais da capital. Para se ter uma ideia do quanto vem acelerando a influência do mercado imobiliário na transformação da cidade, em 2000 foram lançadas 1.547 unidades residenciais em Goiânia. Dez anos depois, no auge do boom do setor, este número cresceu mais de 700%. Foram lançadas 11.543 novas unidades, a maioria em grandes edifícios. A face mais visível dessas mudanças é a substituição de casas por estabelecimentos comerciais e prédios. As histórias que ninguém vê dizem respeito aos antigos moradores, que acabam sendo levados a deixar os lugares onde tinham vínculos sociais.
Goiânia Leite Vieira de Coimbra, de 74 anos, é testemunha deste processo. A servidora pública aposentada viveu por 46 anos no Setor Marista e acompanhou de perto a transformação do bairro, em especial da sua rua, a 146. Da antiga vizinhança não resta quase nada. A casa que era de seu pai foi demolida e agora é estacionamento de um bar. Dos vizinhos, onde Aracy morava virou loja de aluguel de roupas, a casa da Nazaré deu lugar a um restaurante e a de Lurdes foi convertida em boate. Na mercearia do Chinês, que abastecia a redondeza, funciona mais um bar.
Mas o remodelamento não atinge somente áreas nobres. O interesse do mercado imobiliário chegou com força nos bairros mais populares, aproveitando o momento econômico brasileiro e as facilidades para aquisição de imóveis oferecidas pelo governo federal. Antes do boom na construção civil, esse processo já havia atingido áreas tradicionais da cidade, como o Centro, Campinas e o Setor Aeroporto, onde as residências há bastante tempo deram lugar ao comércio, estacionamentos e garagens.
Moradora da Rua Honestino Guimarães, em Campinas, desde que nasceu, no ano de 1971, Ana Paula Oliveira acompanhou a vizinhança ser substituída por lojas. O mesmo aconteceu com as ruas Alberto Miguel, São Paulo e Minas Gerais, situadas entre as Avenidas Anhanguera e 24 de Outubro. As residências saíram de cena para a entrada do comércio de malharia. “A gente não dorme, não anda nem estaciona aqui”, diz. Por outro lado, quem vendeu ou abriu um negócio no local ganhou dinheiro.
O setor empresarial é otimista com as mudanças e acredita que a revitalização e a valorização financeira dessas áreas colaboram para a cidade crescer de forma sustentável. Porém, a questão está longe de ter consenso. O mundo acadêmico chama esse fenômeno - que ocorre em todo o mundo - de gentrificação, conceito que trata do enobrecimento de espaços urbanos, atraindo populações com melhor renda e afastando os mais pobres para as periferias. “Isso é uma antipolítica urbana que atinge a cidade de forma global”, afirma o professor Tadeu Arrais, do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás (UFG).
As contradições não param por aí. Uma das implicações da gentrificação incide na mobilidade urbana. Para os empresários, as transformações urbanas em andamento trazem melhoras nesse aspecto, com moradias mais próximas dos eixos viários e do comércio, reduzindo a necessidade de deslocamento dos moradores. Os pesquisadores do tema apontam outra preocupação: a distância cada vez maior das populações de baixa renda das regiões centrais e dos aparelhos públicos instalados na cidade, na medida em que passam a morar em locais cada vez mais periféricos, fugindo dos altos preços do aluguel e da casa própria nos bairros valorizados.
Poucos pioneiros resistiram às ofertas
O empresário Paulo Diniz da Silva, de 56 anos, o Paulinho, conta que alguns dos antigos moradores do Residencial Eldorado não tiveram a mesma firmeza que ele e entregaram seus lotes aos empresários do setor imobiliário, pois os valores oferecidos por eles “eram generosos”.
“Um amigo trocou o terreno por um Fusca, mas isso foi há muito tempo. Até hoje ele se arrepende”, afirma Paulinho. Restam poucos pioneiros no Residencial Eldorado por uma razão: de 2009 para cá, a valorização do metro quadrado na região superou os 145% e a população original, principalmente os de baixa renda, deixou o lugar. Somente neste ano foram concluídas 536 unidades residenciais e comerciais no bairro. Há ainda vários edifícios em construção.
Novo perfil no Setor Marista
O Setor Marista não parou desde que a aposentada Goiânia Leite Vieira de Coimbra, de 74 anos, deixou o bairro, há um ano. Com o metro quadrado mais valorizado capital, as mudanças estão em pleno vapor. Existem 45 empreendimentos verticais em execução no local. Neste ano, 172 unidades foram entregues aos novos donos e outras 126 então com quase 100% dos trabalhos concluídos.
Dona Goiânia lembra quando a transformação começou. Foi com a criação da filial do bar e restaurante Piquiras, na esquina de onde morava, em 1993. Na época, ela tentou fazer um abaixo-assinado para não deixar transfigurarem o bairro. Sem resultado. Desde então, o assédio dos empresários só aumentou e pouco a pouco as casas foram substituídas por empreendimentos comerciais.
A primeira conhecida de dona Goiânia que vendeu a própria casa recebeu R$ 80 mil no negócio, ainda nos anos 1990. O dinheiro deu para comprar uma casa, um sobrado e um apartamento. Já a servidora pública aposentada entregou o imóvel por mais de R$ 1 milhão. Ela havia comprado por 2 milhões e 800 mil cruzeiros, em 1966.
“Não dá para morar lá mais. Somos obrigados a ouvir gritaria a noite inteira, a ver gente sem roupa, escutar tiros e brigas”, conta. A gota d’água para dona Goiânia foi a agressão verbal e as intimidações que recebeu ao reclamar com o proprietário de um carro estacionado na porta da sua casa, sobre a calçada, impedindo a entrada dos moradores. Adaptada à moradia nova, Goiânia procura olhar para a frente. A única vez que sentiu emoção foi quando soube que estavam retirando o telhado. “Depois passou e hoje não sinto mais nada. Já conheço toda a nova vizinhança e visito os antigos vizinhos.”
“Não dá para morar lá mais. Somos obrigados a ouvir gritaria a noite inteira, a ver gente sem roupa, escutar tiros e brigas”
Modificações profundas em uma década
A comparação de fotos de satélite do Jardim Goiás, na Região Sul, impressiona (veja na quadro nesta página). Em 11 anos, os arredores do Parque Flamboyant trocou o vazio por um emaranhado de edifícios. Neste ano, 947 unidades residenciais foram concluídas no bairro, em 22 empreendimentos. Outras 277 unidades estão em estágio avançado de construção: 99% concluídos. Nos últimos quatro anos o metro quadrado no local valorizou 174%.
Tadeu Arrais, professor do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás (UFG), entende que o Estado tem responsabilidade na valorização e requalificação dos espaços. “Seria ingenuidade olhar para a região do Jardim Goiás e imaginar que isso é algo novo, que não havia sido preparado”, diz.
Observar fotos antigas do Residencial Eldorado, na Região Sudoeste da capital, causa o mesmo efeito a quem examina. Registradas no mesmo intervalo de 11 anos, as cenas mostram como o bairro pouco habitado, sem serviço de transporte coletivo e considerado distante ganhou prédios, moradores, um shopping e comércio. No pacote, também vieram a violência, as drogas e os congestionamentos, destaca o empresário Paulo Diniz da Silva, de 56 anos, o Paulinho.
Ele é dono de um bar e restaurante na Avenida Milão, a principal do Residencial Eldorado. E foi o 13° morador da localidade. Sua casa era a última da rua. Depois dela, somente as cercas dos terrenos ao fundo. “Sempre tive esperanças de que a região cresceria. Quando cheguei aqui, em 1984, tratei de construir um barracão no cantinho do lote para aproveitar a frente para o comércio”, conta. O estabelecimento começou com 33 jogos de mesa e hoje possui mais de 100. O empresário não revela valores, mas afirma que o assédio é constante para vender o espaço.
Fonte: Jornal O Popular