BRT e trincheiras não solucionarão problemas de trânsito, dizem especialistas

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Trincheira que sera construída na Av Rio Verde para o BRT

Investimentos em obras iniciadas há quase mil dias podem ser esforços perdidos, segundo urbanistas e estudiosos da mobilidade urbana

Às terças-feiras, moradores e lojistas do Setor Sul, em Goiânia, reúnem-se com engenheiros da empreiteira responsável por executar as obras da trincheira entre a Avenida 90 e a Avenida 136. Eles conversam no centro da antiga praça Delmiro Paulino da Silva – atual terreno revolvido – sobre os próximos passos a serem tomados. “Reforma dói mesmo, não tem jeito. Mas pelo menos a gente sabe onde vai doer”, diz Renata Fernandes, proprietária de uma loja de puxadores e acessórios na Avenida 90. 

“Você vai deixar o asfalto nesse pedaço, mas como os carros vão chegar lá?”, pergunta ela. 

“Vou liberar o acesso na Avenida 136”, responde um dos engenheiros.

“Ah, que coisa boa.”

“Mas só acesso local, só para quem for ao comércio”, ele emenda rapidamente. “Não posso liberar geral, trânsito normal não dá.”

“Não atrasou a concretagem?”, pergunta um morador aposentado. 

“Atrasou uma semana, mas isso não atrasa a obra em si, só enrola a liberação do desvio”, responde outro integrante da empreiteira, com forte sotaque paulista. 

“Você não consegue tirar a faixa de ‘trânsito interditado’ aqui na 90?”, pergunta Renata. “Porque quem chega nessa praça consegue ir até a Praça do Cruzeiro tranquilamente.” 

“Isso é a SMT. O projeto de desvio de trânsito é da SMT. Eu só executo.”

“Mas se essa faixa rasgar por algum motivo…”

“Aí eu não vi nada, meu”, responde o engenheiro paulista e todos riem. 

Renata Fernandes explica que a placa prejudica o comércio ao fazer a população pensar que não pode acessar as lojas, atualmente com 30% menos clientes em relação a meses anteriores. “A placa atrapalha muito, mas não tanto quanto a mídia”, afirma. “A mídia adora vir fazer reportagem dizendo que a 90 está um caos, mas não falam que aqui sempre foi um caos. Na verdade, o trânsito agora está melhor do que antes. É a cultura do sensacionalismo”, diz ela.

Os moradores ficam indecisos entre pressionar por melhorias denunciando incorreções e zelar pelos próprios negócios exaltando vacilantemente o trabalho da prefeitura. Mário Sobrosa, morador da região há mais de três décadas, diz sempre que pode que a trincheira ficará linda, mas confessa que está preocupado com o nível do lençol freático. Ele fotografa periodicamente a água que se acumula no fosso do elevador de seu prédio e tenta mostrar aos engenheiros.

“Não quero saber disso”, responde o empreiteiro paulista, se recusando a olhar as fotografias. “Não posso fazer nada.”

Na ocasião da concepção do projeto, ainda no mandato de Paulo Garcia (PT), a Secretaria de Infraestrutura (Seinfra) acatou o relatório de um geólogo que afirmava que não haveria impacto ambiental. A vereadora Dra. Cristina formalizou uma representação no Ministério Público Federal – a quem compete a causa do meio ambiente. Cerca de 50 moradores, síndicos e lojistas foram ouvidos pelo desembargador, que enviou um técnico para fazer outra averiguação dos possíveis danos ambientais. Esse também apresentou um laudo afirmando que não haveria impactos significativos. 

Outro engenheiro acalma o morador idoso: “Vocês estão em um lugar privilegiado. Estão no alto. Qualquer pepino que acontecer – e não vai acontecer nada – durante as chuvas, a gravidade vai puxar a água para o córrego Botafogo. E lá embaixo, na Jamel Cecílio? Ali não tem para onde jogar a água”. Moradores e engenheiros discordam quanto à profundidade do lençol freático: estes dizem que a água está a 6,5 metros de profundidade, aqueles a 1,5.

Simultaneamente, todos percebem a pauta negativa sendo debatida e telepaticamente concordam em mudar de assunto. “A partir de segunda-feira [dia 8] a imprensa vai ter um lugar para falar muito mais do que aqui: a Avenida Goiás”, diz um engenheiro.

Trincheiras
O processo de angariar recursos do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) para as obras de mobilidade se iniciou em 2012. Quando teve acesso à verba de R$ 210 milhões, em 2015, a Prefeitura iniciou a construção do BRT Norte-Sul, que se interrompe na Estação Ferroviária. O trecho que liga o Terminal Isidória ao Terminal do Cruzeiro também foi iniciado e paralisado. As construções do Setor Sul se espraiam da Praça do Cruzeiro até a rua 115, com a Avenida Jamel Cecílio ainda por vir em agosto. 

Quem viaja pela cidade vê a ostentação de canteiros interrompendo grandes vias. Fernanda Mendonça, arquiteta urbanista e conselheira do CAU (Conselho de Arquitetura e Urbanismo) de Goiás, afirma, “Essa secção é ruim para a mobilidade. Dá visibilidade para as obras da Prefeitura, mas não dá eficácia para o funcionamento da cidade”. Apesar disso, o consenso entre os habitantes é que, se as viadutos funcionarem, os transtornos serão aceitos pelos benefícios com prazer. Fernanda Mendonça, entretanto, é cética quanto às contribuições das construções a longo prazo.

“A noção de que trincheiras e viadutos vão resolver o problema da mobilidade é uma ilusão”, diz a conselheira do CAU. Concorda a professora da Universidade Federal de Goiás, Erika Cristine Kneib, pesquisadora na área do planejamento urbano. A doutora Kneib afirma: “O cruzamento em desnível só deve ser empregado em vias expressas que não podem ter descontinuidade, a exemplo das rodovias estaduais e federais. O viaduto não resolve problemas de congestionamento. Ele é somente a forma mais rápida de se chegar ao próximo ponto de congestionamento”. 

Segundo as estudiosas do assunto, além de não resolver o problema dos engarrafamentos, cruzamentos em desnível mudam a forma como as pessoas interagem com a cidade negativamente. “O viaduto degrada o ambiente e prejudica as atividades urbanas, assim como os pedestres e ciclistas. Cidades que construíram viadutos no passado têm demolido os mesmos para melhorar e qualificar a cidade”, diz Erika Cristine Kneib. 

A vereadora Dra. Cristina também manifesta preocupação com este aspecto do urbanismo, já que, após as obras, os ocupantes do Setor Sul terão quase metade das calçadas transformada em via para carros. A parlamentar lembra que o bairro tem uma população idosa relativamente grande e que, em Goiânia, pessoas com redução de mobilidade têm de desviar de carros estacionados para usar as calçadas. 

Quando perguntadas como resolver o problema dos congestionamentos, as urbanistas relatam uma realidade severa.  “Não existe mágica: é necessário um planejamento conjunto da cidade entre atividades e sistemas de transporte”, diz Erika Cristine Kneib; “e o pedestre, o ciclista e o transporte coletivo necessitam ser prioridade no espaço viário e na infraestrutura”. Fernanda Mendonça é mais direta: “Não resolve. É preciso mudar a formas como as pessoas se locomovem. Isso é um processo e não acontece da noite para o dia”. 

A conselheira do CAU explica com um exemplo: quando a Inglaterra tinha 4 milhões de pessoas, no século XIX, a população de cavalos era de 8 milhões. Os animais causavam inúmeros aborrecimentos e problemas sérios de saúde. Com cada cavalo produzindo até 15 quilos de estrume por dia, em épocas chuvosas as cidades eram invadidas por moscas transmissoras de doenças e em épocas secas, o estrume se transformava em um pó que causava problemas respiratórios. Nesse cenário, a chegada do carro foi a solução. 

“Se [viadutos] resolvessem, os Estados Unidos teriam resolvido o problema em Los Angeles e São Francisco, onde há uma infinidade de transposições em nível”, afirma Fernanda Mendonça. Segundo a agência de dados de trânsito Inrix, Los Angeles tem o pior tráfego do mundo, com São Francisco seguindo de perto em quarto lugar. A facilidade de circulação e financiamento para veículos estimulam esse tipo de transporte, conforme explica a arquiteta urbanista.

Agora, uma nova mudança é necessária, já que o espaço urbano é limitado. Embora tenha se dado de forma mais rápida na Europa, Fernanda Mendonça diz que vê transformação cultural acontecer no Brasil, com bicicletas, patinetes e outros modais elétricos. Parte essencial dessa transformação é a estimulação do transporte coletivo sobre o individual. 

Veículo Leve sobre Trilhos, sobre pneus
O Bus Rapid Transport, BRT, é uma versão brasileira do Veículo Leve sobre Trilhos e 206 países já implantaram o modelo que tornou a capital paranaense referência em 1974, sob o projeto de Jaime Lerner. Também do arquiteto e ex-prefeito de Curitiba é o projeto do Eixo Anhanguera, da década de 1980. O VLT sobre pneus, como é às vezes chamado, tem as vantagens de ser muito mais barato, já que não precisa de via específica e utiliza um veículo módico, apesar de ser mais poluente e mais intrusivo visual e urbanisticamente. 

“Goiânia é uma metrópole jovem”, afirma Fernanda Mendonça, “com dificuldades financeiras e, para a Prefeitura implantar isso, seria necessária uma parceria público-privada. Há ainda uma discussão política a respeito dos contratos de concessão do espaço para operação de uma empresa específica de transporte”. 

Quase mil dias após o início das obras, o atraso no corredor de transporte deixou de atender 114 milhões de passageiros e causou grandes prejuízos. Com custo inicial previsto de R$ 274 mil, a obra, que deveria ter sido entregue no final de 2016, passou meses paralisada. O prefeito Iris Rezende (MDB) alegou em dezembro de 2018 ter herdado dívidas da gestão anterior que atrasariam a entrega para o fim de seu mandato, em 2020. 

Se VLT ou BRT, as arquitetas urbanistas concordam que, na fase incipiente de mobilidade em que Goiânia se encontra, qualquer solução que privilegie o transporte público será melhor do que nada. A população parece alinhada com o pensamento: “A gente vai sobrevivendo”, afirma a lojista Renata Fernandes, “nessa altura só queremos que acabe logo”.

Procurada, até o fechamento da reportagem a Prefeitura de Goiânia não respondeu a questionamentos do Jornal Opção. O espaço permanece aberto para esclarecimentos.