“Andar de bicicleta é coisa de pobre”: uma prova do atraso na mentalidade do brasileiro (e do goiano)"

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Pelo bem do trânsito em Goiânia, é preciso que a administração municipal siga o exemplo de São Paulo e abra espaços para que as pessoas tenham coragem de se tornar ciclistas

Dias atrás, da mesa de trabalho da Câmara de Goiânia, da qual é presidente, o vereador An­selmo Pereira (PSDB), em tese “representante do povo” e também dos interesses dos “representantes do povo”, participava de uma discussão sobre a eventual instalação de uma Comissão Especial de Inves­tigação (CEI) sobre o transporte público de Goiânia. Djalma Araújo (SD) sugeria que os vereadores visitassem os terminais e avaliassem a qualidade do serviço. Foi quando, segundo testemunhado pelos presentes ao plenário e publicado no jornal “O Popular”, Anselmo disse: “Faço qualquer coisa, menos andar de ônibus. Fiz isso muito quando jovem e pobre e criei psicose. Hoje não entro num (ônibus) nem se me pagarem.”

Quem estava presente disse que a fala foi em tom de brincadeira. Coisa do estilo Anselmo Pereira de ser. E não há motivos para achar o contrário, até porque, do lugar que ocupa seria estultice afirmar tal coisa senão com tom irreverente. Por outro lado, existe a consagrada expressão, que agrada bastante especialmente aos psicanalistas, segundo a qual toda brincadeira tem um fundo de verdade. Dessa forma, todo enunciado, mesmo aquele dito de forma aparentemente descompromissada, só pode ter algum efeito de sentido se tiver alguma conexão com a experiência. Só assim se pode “entender a piada”.

Mesmo se foi brincadeira, algo sem querer querendo, Anselmo Pereira representou um elitismo que, de fato, existe. No Brasil há a ideia atrasada, que em Goiás atinge um nível notadamente mais profundo, de que utilizar transporte coletivo é algo destinado a quem não tem dinheiro para comprar um veículo particular. É bem verdade que esse discurso em Goiânia acaba ganhando força por conta da péssima qualidade do serviço, mo­tivo de revoltas constantes dos usuários. Mas a ditadura da cultura do motor faz com que o mesmo valha também para quem se aventura a andar de bicicleta em cidades que são totalmente hostis aos ciclistas.

É o caso da capital goiana. Ironica­mente, um olhar sobre o relevo goianiense deixa bem claro: 99% das vias da cidade são amplamente favoráveis ao uso da bicicleta como meio de transporte. Não há ladeiras intransponíveis, não há morros que impeçam o trânsito em duas rodas. O forte calor em algumas épocas do ano, esse sim, poderia ser um empecilho, mas nada que não tenha como ser contornado com alguma criatividade.

Mas o fato é que, ironicamente, em uma cidade plana e onde durante praticamente metade do ano as chuvas são escassas — molhar-se seria outro incômodo para pedalar —, não há espaço para bicicletas em Goiânia. Ou elas se arriscam em meio aos carros ou disputam as calçadas com os pedestres. Em extensão, a quilometragem de ciclovias na cidade não chega hoje a sete quilômetros, somadas as extensões dos únicos dois trechos existentes, nas avenidas Universitária (setores Centro e Uni­versitário) e na T-63 (trecho entre Parque Anhanguera, Jardim América e Setor Bueno). Ressalte-se que uma das promessas mais memoráveis da “Goiânia Cidade Sustentável” que serviu de plataforma para a reeleição do prefeito Paulo Garcia (PT) foi dispor a capital com mais de cem quilômetros de ciclovias até 2016.

Passaram-se dois anos e meio desde as promessas de campanha, o prazo está cada vez mais apertado e o ciclista continua desrespeitado, sem qualquer espaço a­dequado. Ele já nem espera mais por ci­clo­vias: uma faixa exclusiva, pintada no solo em cor destacada, já ajudaria bastante.

São Paulo banca o ciclista

É o que o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, petista como Paulo Garcia, tem feito. Ele encarou o complexo desafio político de enfrentar o estigma antipedal que existe no Brasil. Como Paulo Garcia, Haddad também prometeu bastante espaço para ciclistas (400 quilômetros). Diferentemente do colega goianiense, entretanto, já implementou metade disso.

Apesar de servida com linhas de metrô e trem, a maior cidade do País é também a com maior problema de mobilidade. As centenas de quilômetros de congestionamento se tornaram marca da paisagem paulistana tanto quanto a garoa — em tempos de crise hídrica, aliás, é quase uma perversa substituta.

Como em qualquer ação para mudança de cultura, é preciso enfrentar preconceitos e resistências. Algo que não é fácil, especialmente para políticos. Nesse sentido, tem sido louvável a determinação do prefeito em abrir ciclofaixas no complicado trânsito da metrópole. Como dois corpos não ocupam o mesmo espaço, para dar lugar às bicicletas foi preciso reduzir a área de locomoção dos motoristas. Foi o que bastou para uma enxurrada de críticas.

A principal é de que as ciclofaixas da cidade estão vazias. “Tem mais gente andando no deserto do Saara do que nas ciclovias”, provocou o historiador Marco Antônio Villa, em uma entrevista. Haddad respondeu categoricamente: “Perguntei ao prefeito de Bruxelas, de Nova York, de Buenos Aires: o que vem primeiro, a ciclovia ou os ciclistas? Todos foram unânimes: primeiro vem a malha cicloviária, porque sem segurança no trânsito as pessoas não se arriscarão a usar bicicleta.”

Goiânia, se quiser mudar a relação de dominância do automóvel em relação aos demais meios de transporte, vai ter de ir pelo mesmo caminho: cortar espaço dos carros, já que estes já se beneficiaram da redução de calçadas em várias vias. Para uma visão moderna e saudável de cidade, é preciso fazer agora o movimento contrário: dar vez ao transporte coletivo, ao pedestre e ao ciclista. Justamente aqueles que o elitismo trata hoje como párias do sistema de mobilidade. Quem sabe, para daqui a algum tempo, um vereador não se sentir envergonhado se tiver de andar de bicicleta ou de ônibus.

Pedaladas pelas ruas como empreendimento

Se andar por Goiânia de bicicleta para simples deslocamento já é tarefa difícil, imagina fazer das ruas um ganha pão com um serviço de entrega de encomendas movido a pedaladas? Foi a isso que se propôs Ruy Loyola Carvalho há quatro anos, quando fundou a DeBike Courier. Cicloativista, ele pensou em uma empresa sobre duas rodas e sem motor depois de uma “experiência positiva” de seus pais na Europa e de contatos em São Paulo com quem tinha planos de empreendimento semelhantes ao seu.

Desde maio de 2011, a DeBike Courier pedalou, na estimativa de Ruy, pelo menos 283 mil quilômetros pelas ruas de Goiânia. Durante esse tempo e percorrida toda essa distância, um saldo positivo: apenas três acidentes, nenhum deles grave. Uma média nada ruim de mais de 94 mil quilômetros por ocorrência.

Mas, apesar das estatísticas favoráveis a seu negócio, Ruy Loyola — que hoje divide a empresa com três sócios — não considera as ruas da capital um ambiente seguro. “Falta muito respeito ao ciclista, que para muitos é invisível.” Ele considera que o número baixo de acidentes se deve ao fato de seus trabalhadores (hoje são quatro) serem treinados e usarem todos os equipamentos de segurança — até mesmo um apito, que é usado como a “buzina” do ciclista. “Quando se está de capacete, roupa adequada e uma bicicleta devidamente sinalizada, há um olhar diferente dos condutores motorizados. Quem não está equipado é rebaixado a ‘bicicleteiro’ nas ruas.”

Ruy Loyola diz que desde que começou os trabalhos na empresa se locomove apenas de bicicleta. Só de casa à sede são dez quilômetros de percurso. “Faço tudo de bike: vou ao banco, saio para almoçar, visito clientes.” Corroborando a ideia de que quem se locomove dessa forma é tratado culturalmente como um “menor”, ele percebeu desde o início reações desconfiadas. “Ao ver o diretor chegar de bicicleta para uma reunião de negócios, pensavam que a empresa estava quebrando”, conta.

Ao contrário, a DeBike Courier vai bem. Não faz serviço para particulares. Com quatro bicicletas pela cidade, tem 15 contratos de serviços. Entre os clientes, construtoras, agências de publicidade, empresas de tecnologia e do ramo alimentício. Transporta mercadorias com carga de até 7 quilos e proporciona economia de até 30% em relação ao serviço de motoboy. “Fazemos tudo que se faz de moto faz, mas com preço mais barato e o fator responsabilidade socioambiental, que pode contar muito para a imagem do cliente.”

Fazer dinheiro com um serviço de bicicletas é, com certeza um modo bem interessante de observar o que pode se extrair de mobilidade pelas ruas. Há outros, igualmente criativos, embora não necessariamente financeiramente rentáveis. No caso do poder público, é preciso lucrar em termos de sustentabilidade. Será que a administração municipal, com um ano e oito meses pela frente, terá coragem para enfrentar o desgaste de tirar espaço dos automóveis e motos para dá-lo aos ciclistas?

Análise: Goiânia merece ciclismo seguro como opção para deslocamento. Que a Prefeitura cumpra seu compromisso

Com o carro na oficina por um bom período, restaram para mim três alternativas para o deslocamento entre a residência, no Conjunto Itatiaia, e a sede do Jornal Opção, no Setor Marista, distantes 12 quilômetros entre si: carona, ônibus ou bicicleta. Na primeira, dependeria da disponibilidade de amigos; na segunda, de encarar as demoras do transporte coletivo; a terceira, apenas de uma bicicleta em bom estado e algum esforço físico.

Descartei totalmente a segunda opção – no fim, seria a mais demorada de todas, e contando só a viagem em si –, encaixei a primeira nas vezes que isso pôde ocorrer e optei por encarar o trecho também pedalando. A primeira coisa a fazer: perguntar na empresa se teria possibilidade de tomar um banho ao chegar. Depois, organizar as coisas na mochila para então pedalar.

Primeiramente, é preciso dizer: mesmo sob o sol da tarde, é uma sensação agradável poder se deslocar de modo relativamente rápido e com a própria força do corpo. Assim como no carro, também há uma posição de autossuficiência, mas noutro sentido — não o de estar em uma máquina poderosa, mas o de ser a própria. Nada mais que uma sensação, que passa logo quando se percebe o perigo que cerca o ciclista.

Sem espaço próprio para se deslocar, é preciso triplicar a atenção. Diz um amigo que o segredo para o ciclista goianiense é ter o máximo de olhos possível, inclusive na nuca. É verdade: é preciso se preocupar com o que vem pela frente, mas sem se esquecer do que acontece atrás. Um fato interessante é perceber que boa parte dos acidentes envolvendo ciclistas, senão a maioria, podem acontecer não por conta de outro veículo, mas por deficiência da via. Basta encarar uma rua recheada de buracos, algo infelizmente comum em Goiânia, para ter esse “insight”.

Outra questão: em certas situações, como na passagem pelo Centro da capital, fica praticamente impossível ao ciclista obedecer às regras de trânsito. Para garantir a sobrevida, ele é impelido a ocupar as calçadas, já que o fluxo de carros e o perigo de uma porta se abrir à sua frente é algo assustador. Assim, acabo entendendo o medo de uma amiga que comprou uma bicicleta elétrica, mas foi tomando trauma de usá-la pela cidade — é que o risco de acidente se multiplica em determinadas situações.

Por outro lado, é impressionante como o tempo de deslocamento acaba sendo menor do que se a viagem fosse feita de ônibus: são pouco mais de 40 minutos, no total, mesmo sem forçar a barra e respeitando os sinais fechados. Impressionante pensar que, se o deslocamento fosse em horário de pico, às 18 horas, provavelmente eu chegaria mais cedo ao destino do que se estivesse de carro, mesmo percorrendo 12 quilômetros.

As autoridades de Goiânia precisam fazer um pacto pela mobilidade, e já faz tempo. Não há nada mais sustentável para se fazer em curto prazo e salvar o slogan de campanha da atual gestão. Talvez seja mais difícil politicamente do que tecnicamente implantar ao menos faixas exclusivas para ciclistas (as ciclofaixas), já que assegurar seu espaço em ciclovias de fato parece ser algo mais dispendioso e demorado. Para executar, é preciso começar e enfrentar as críticas, que serão muitas. Fernando Haddad resolveu topar a parada em São Paulo e deixará um legado importante se mantiver a firmeza no propósito, ainda que possa comprometer a própria reeleição. Paulo Garcia nem com outro mandato precisa se preocupar. Está na hora de fazer. E é preciso fazer.

Fonte: Jornal Opção