Goiânia precisa aprender a gostar de bicicletas para sobreviver como cidade
Se você já tentou pedalar em Goiânia, vai ter noção do que relatado neste texto. Primeiramente, antes de tudo mesmo, vai descobrir que, para pegar uma bicicleta e andar por uma cidade esta capital, só tendo prazer e coragem.
Faz dois meses, desde que tive um acidente urbano de proporções um pouco acima da média e que demandariam certo tempo de “estaleiro” para o carro, tenho a experiência de viver na cidade dos automóveis sem estar com um.
E Goiânia é feita para os carros. Cada vez mais. Se for para ser condescendente, posso dizer: feita para carros e motos. Ah, sim: mas temos as picapes – nenhuma capital do País tem tanta caminhonete quanto aqui. E não falo em números proporcionais, não: mesmo sem olhar os registros nos respectivos Detrans, tenho absoluta convicção de que há mais desses veículos em ruas goianienses do que paulistanas.
A frase inicial do parágrafo anterior, consolidada pelo que a segue, impõe que vivemos em uma cidade movida a motor. E motor de veículo particular. Com o passar dos anos, o mito de cidade planejada que Goiânia tinha foi aos poucos sendo derrubado em seus vários pilares. Um deles foi o da mobilidade.
Uma cidade moderna que se preze não poderia jamais abrir mão de um eficiente transporte coletivo. E disso, desde que caiu nas mãos dos eternos concessionários, Goiânia passou a não fazer mais questão. A tal ponto de eu, que moro a mais de duas léguas do local de trabalho, preferir pegar uma bicicleta a enfrentar as agruras do “andar de ônibus”. Porque não é só tomar a condução: é preciso caminhar até o ponto, esperar – e daí além de tomar a condução, tomar também sol ou chuva –, fazer a viagem, por vezes bem desconfortável, e depois empreender nova marcha até o local de destino.
De bicicleta, em um ritmo nem tão pesado, dá para cumprir a rota em igual intervalo de tempo do que seria apenas a viagem de ônibus em si. Nada mau, não é?
Sim, nada mau – desde que os ciclistas tivessem seu espaço garantido nas vias. O Estatuto das Cidades faz uma série de previsões sobre os direitos de mobilidade que deveriam ser garantidos a quem transita de bicicleta, mas que são solenemente ignorados. Inclusive nas metrópoles. A lei é de 2001, mas somente agora, no governo de Paulo Garcia (PT), Goiânia começou a ter, de fato, alguma estrutura cicloviária. Tudo de forma ainda tímida, mas não dá para negar que seja um avanço.
Entretanto, pedalar por Goiânia continua sendo um exercício para quem tem coragem. Ora, se o trânsito está entupido de automóveis, cada um se defende – ou ataca – como pode. E assim, tentam buscar os meandros para escapar do caos. Em uma situação assim, a lei do mais forte prevalece, e a fatura será paga por quem pode menos. No caso, pedestres e ciclistas. Dessa forma, as calçadas são invadidas por carros, bem como são obstruídas suas rampas de acesso para cadeirantes. O ciclista vê sua circulação ser impedida em obras que visam favorecer exclusivamente os automotores – em Goiânia, tanto no túnel da Avenida Araguaia como no viaduto da Praça do Ratinho está vetado o trânsito de bicicletas.
Veja bem: em uma cidade com todo o potencial para o tráfego cicloviário, ele acaba por sofrer com incremento de barreiras, em vez de equipamentos para sua garantia. Em que pesem as ciclovias e ciclofaixas em obras ou já em operação, ainda não há rotas conectadas entre as várias regiões da cidade. Ou seja, quem quiser sair da região norte para o Flamboyant de bicicleta, por exemplo, vai sofrer o estresse de dividir uma pista que não é para ele. Mais do que isso: entre os sujeitos da mobilidade urbana, o ciclista é o único que não tem seu espaço minimamente garantido.
Aí então podem dizer: ora, mas a demanda de bicicletas é muito pequena para que a cidade gaste com isso. Primeiramente, essa é uma afirmação bastante contestável, para não dizer errônea. Em segundo lugar, ainda que houvesse apenas uma bike em circulação pela cidade, esta teria de se mostrar com a estrutura de mobilidade adequada para satisfazer esse cidadão. É o que prevê a legislação, então que ela seja respeitada. Temos na estrutura cicloviária a primeira base do tripé dos gargalos a serem resolvidos: é preciso garantir as “ruas” de quem trafega de bicicleta, o que só ocorre, ainda, em pequenos trechos.
Ainda falando de estrutura, temos uma total falta de logística para o ciclista. No clima goianiense, fica nítido que quem pedalar provavelmente vai chegar ao destino suado e precisando de um banho. E são poucas as empresas que hoje demonstram, de alguma forma, ter interesse em dar suporte estrutural para seus trabalhadores, nesse sentido. Uma pena, pois, se o ciclo de apoio ao ciclista se fechasse de forma satisfatória, as ocorrências de falta ao trabalho por motivo de saúde em breve baixariam, pelo ganho com a prática rotineira de exercícios físicos.
O segundo ponto é a segurança. Fala-se muito do roubo de carros e motos, mas as mesmas estatísticas, quando relativas às bicicletas, são desprezadas, embora não sejam, de forma alguma, desprezíveis. Muitos dos ciclistas que são assaltados nem chegam a prestar queixa ou registrar boletim de ocorrência, por entender que “não vai dar em nada mesmo”. Um sentimento que tem razão de ser: uma bicicleta “vale” pouco para o empenho da polícia, diante da quantidade também considerável de carros e motos roubadas. É assim que pensam, infelizmente, muitos delegados.
A terceira base desse tripé é a civilidade. Aqui fica o recado: seria preciso detonar dois processos com urgência. O primeiro, de papel remediador, é uma campanha massiva de conscientização e incentivo ao uso da bicicleta como meio saudável de locomoção; o outro é a introdução da disciplina “educação para o trânsito” no currículo das escolas públicas.
O Brasil como um todo precisa repensar sua política de mobilidade urbana, e isso está cada vez mais claro. Mas Goiânia, em particular, tem de se reinventar como cidade para sobreviver ao caos. E isso passa pelo respeito à bicicleta e ao espaço do ciclista. Uma Goiânia com menos carros e mais bicicletas nas ruas não tem como ser uma cidade pior. Só pode melhorar.
Fonte: Jornal Opção